domingo, 10 de julho de 2011

JOÃOS

Antes de seguir viagem, cabem alguns enfrentamentos nesse desnudar. De 1952 a 1992, quarenta anos. Dizem que a vida começa aos quarenta e hoje, aos quase sessenta, eu ainda me preparo.  Não que assuste, porque para lá nós vamos, então não tem remédio. O que vamos tirar desta vida é o que importa essencialmente. E ávida, ela está aí presente, tomando do nosso tempo.
Não me ocupo mais com o trabalho no sentido de sobrevivência e aparecências. Se ele advier, que chegue e oportunize ganhos, inclusive de trocados. Houve tempo em que tive deslumbramentos. De agora, não. Meu tempo agora é de recolhimentos, sisudamente para buscar sentido, já que é grave a pergunta.
Desses quarenta anos ficaram muita história sem ser contada, ainda. Ligadas aos afetos, aos distanciamentos que somam a gente para menos (roubo de Manoel de Barros). Tantas pessoas que passaram por mim com as quais compartilhei para além de simpatia, encanto ou descaso.
Viver essencialmente não pode ser apenas ocupar-se. Deve ter outra razão, para além do que colocar cérebro, coração e mãos à obra. Volto a dizer como fiz no outro acostamento: é ser marcado e marcar indelevelmente o outro.
Insisto: o que relatei aqui pode até gerar impressões de realce sobre a minha inteligência, coragem, determinação ou até fé em mim mesmo nas inúmeras cenas empresariais. Não é para isso que escrevo e nem por isso gostaria de ser lembrado. 
Peço mais, que sirva tudo à reflexão. Alguém comentou comigo que ficou impressionada com minhas histórias e que se percebe a partir delas como uma pessoa muito pouco ousada, que não tem coragem para correr riscos. Outro me disse que embora convivesse há muito tempo comigo não me conhecia. Outra ainda, que se reconhece muito nas minhas histórias.
Peço isso: que a minha vida sirva.
No último domingo fiz um encontro com pouco mais de cem membros representantes de uma comunidade de tradição milenar. Esteve lá um jornalista de São Paulo que no final do evento se disse impressionado com a facilidade com que eu transitei pelas entranhas das tradições da comunidade. Ora bolas, as estranhas não são dessa comunidade em especial. As entranhas são do Humano, essa procura que está aqui desde LINGUAR.
Talvez não esteja na hora, mas já que me acomete agora, vai lá. Nesse tempo passado, foi em maio de 1981, há uma perda precoce e irreparável. Seu João, meu sogro.  Essa é uma marca indelével. Era indispensável que ele estivesse aqui ainda, compondo comigo para desaguar sobre seus netos. Quanto era bom esse sujeito...
Eu e minha esposa recebíamos a visita dele em alguns finais de tarde em nosso barracão. Ele sempre deixava alguma coisa para nós, com uma preocupação danada do que eu poderia achar.
Seu primeiro neto nasceu numa quarta-feira e meu sogro apostou com meu pai que quem vencesse o jogo de futebol no domingo seguinte seria o time pelo qual o neto torceria pelo resto da vida. Meu time sempre perde em ocasiões determinantes.  No domingo deu Galo sobre o Cruzeiro. Seu João chegou em casa, todo serelepe, algumas semanas depois do nascimento com o uniforme do time que impregnou o meu filho. Hoje, toda vez que vejo Vladimir sofrendo assistindo aos jogos do seu time, lembro-me de uma foto que tirei dos dois dormindo, um ao lado do outro. Meu filho com um ano de idade, vestindo o uniforme da cachorrada.
Incrível como somos marcados e marcamos.
Este texto estava pronto na quinta-feira com o título ACOSTAMENTO I, mas...
Quinta-feira sofri outra perda daquilo que se constitui História. Há vinte anos adquiri o terreno onde hoje temos nossa casa de campo em Santa Luzia. Fui o primeiro comprador e praticamente construí, junto com o empreendedor, o condomínio. Arruamento e eletrificação pública foram as nossas primeiras obras. Exatamente em frente à minha propriedade havia uma árvore centenária: peroba do campo. Quando fomos abrir a rua fizemos com o maior carinho de tal sorte que a árvore fosse preservada e a contornamos. A rua ficou com uma ligeira ondulação o que dá um toque singelo à passagem.  Por determinação da síndica, sem maiores razões, a árvore foi decepada na base na última quinta-feira. A alegação é de que a árvore estivesse torta. Perda irreversível.
Falei com o empreendedor do condomínio, com dois outros vizinhos que faziam parte dos pioneiros que, como eu se indignaram. Um deles, inclusive, me disse que aos domingos quando passava por ali passeando com o seu neto, a criança sempre apontava a casinha de um João de Barro no alto da árvore: “vovô, alá...”
Tenho dependurado na parede do patamar de entrada do meu quarto um fragmento do poema Para encontrar o azul eu uso pássaros, de Manoel de Barros: FRAGMENTO 14.
Remexo com um pedacinho de arame nas minhas
memórias fósseis.
Tem por lá um menino a brincar no terreiro
entre conchas, osso de araras, sabugos, asas de caçarolas, etc.
e tem um carrinho quebrado de borco
no meio do terreiro.
O menino cangava dois sapos e os botava a arrastar
o carrinho.
Faz de conta que ele carregava areia e
pedras no seu caminhão.
O menino também puxava, nos becos de sua aldeia,
por um barbante sujo, umas latas tristes.
Era sempre um barbante sujo.
Eram sempre umas latas tristes.
O menino hoje é um homem douto que trata com
Física Quântica.
Mas tem nostalgia das latas.
Tem saudades de puxar por um barbante sujo
umas latas tristes.

Aos parentes que ficaram na aldeia esse homem
douto encomendou uma árvore torta...
Para caber nos seus passarinhos.
De tarde os passarinhos fazem árvores nele.

Incrível como vão se fazendo os cortes.

Até breve.

3 comentários:

  1. Compartilho das suas duas perdas , o do nosso sogro , João Miranda , enquanto ele não chega as coisas não andam e da triste imagen da selvageria , feita por uma pessoa , que com certeza não parou para admirar as casinhas de João de Barro ou mesmo as sinfomias dos passaros no fim de tarde , num palco milenar .

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  2. Quando vc falou do Sr João levar algo para vcs, digo que uma lembrança muito viva que tenho dele foi quando o Bernardo nasceu e ele chegou para uma visita no apto de voces um um pão para o café. Gente muito boa, ainda mais atleticano. Da "peroba do campo" só posso lamentar a falta de sensibilidade desta infeliz pessoa.
    Abraço

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  3. Decreto que todas as síndicas deveriam desaparecer do mapa.
    ABSOLUTAMENTE TODAS essas catarinas de médicis horrendas.

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