quinta-feira, 24 de outubro de 2019

ALVÍSCERAS








Ontem acompanhei parte da sessão do STF para o julgamento da questão da manutenção da prisão de réus condenados pela Segunda Instância.

Na verdade assisti apenas parte do voto do Ministro Luiz Roberto Barroso.

Dei-me por satisfeito com o brilhantismo dos argumentos e dos fundamentos utilizados pelo iminente juiz, claro ressalvando-se a minha condição de leigo nas entranhas do mundo das leis.

Entre 2009 e 2019, 98% dos recursos protelatórios de sentenças em segunda instância foram indeferidos – depois de anos, ás vezes até décadas – pelo STF por não se encontrarem dentro dos princípios constitucionais ou de pressupostos de leis ordinárias, e o resultado foi mantido. 1% dos recursos recebeu acolhida pelo Supremo que manteve a decisão da segunda instância. Os outros 1% tiveram a sentença revisada e os réus foram absolvidos.

Outro argumento que iluminou a tese do Ministro é de que a partir de 2016, quando foi julgada preliminarmente pelo STF a questão, reduziu o número de crimes. A medida sinalizou que a justiça passaria a ser feita no Brasil.

Dezenas de delações premiadas e acordos de leniência foram celebrados o que permitiu, via denúncia dos envolvidos, a elucidação de inúmeros casos de corrupção.

Embora a puslítica continue a mesma, causando náuseas diárias, há sinais importantes promissores no campo da Administração Pública e de algumas lideranças do Congresso Nacional.

Alguns ministros de estado têm se destacado no equacionamento de questões estruturais do país, gerando alguma expectativa positiva no mercado e na sociedade.

Hoje, na Espanha, de onde vem parte da química do meu sangue, os restos mortais do ditador espanhol Francisco Franco foram exumados de um mausoléu público no Vale dos Caídos, nas proximidades de Madri, onde estavam desde sua morte, há mais de quatro décadas.

Foram transferidos para o túmulo privado da família, para que o mausoléu em questão deixe de ser um lugar de exaltação do franquismo.

Ontem assisti à semifinal da Libertadores. Que time é aquele, São Telê! Posso estar enganado por que não acompanho, mas o Flamengo vai atropelar o River e será campeão do mundo.

Tudo isto porque li, logo cedo, o meu horóscopo:

“Reserva este dia para mudar radicalmente o tom de tuas conversas, sejam essas formais ou informais. Em vez de expressares teu descontentamento, tuas dores ou desconfortos, procura usar o mesmo tempo que dedicarias a isso para conversar abertamente sobre o futuro mundo melhor que precisa ser construído, começando aqui e agora com pequenas atitudes, tais como exorcizar das conversas o lugar comum do sofrimento. É ridículo romantizar o sofrimento, como se as pessoas só pudessem sentir-se conectadas umas às outras quando conversam sobre suas limitações e, ao mesmo tempo, tivessem de ocultar o entusiasmo com que sonham o futuro, porque isso as tornaria alvo de escárnio. Se, de início, não encontras quem queira ter uma conversa positiva contigo, não te importes, mas persiste nesse caminho. O início é tímido.”

Sempre achei temerário contrariar os astros.


Até breve.


Significado de Alvíssaras

Substantivo feminino plural: Prêmio que se dá a quem traz boas novidades
Interjeição que serve para anunciar boas novas.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

INÓCULOS





Não sei se no sábado ou no domingo um inseto me mordeu na perna, pouco acima do calcanhar. Acho que ele deixou algo em minhas veias. Apalpando no local ainda dói. Estranho.

Também no sábado, com certeza, fui a um evento patrocinado pela Associação Médica de MG e afiliadas, encerrando a semana em que se comemora o Dia do Médico, no dia 18 e no dia 12 o Dia Internacional dos Cuidados Paliativos.

Convidada para falar a competente filósofa da Nova Acrópole, Lúcia Helena Galvão, a quem fui cumprimentar e disse que ela tem sido um facho de luz para mim e para tantos diante do obscurantismo que grassa.

Desenvolveu seu tema “Reflexões para a Vida e para a Morte” em dois momentos do evento, na abertura e no encerramento. No intervalo das sempre brilhantes proposições de Lúcia, falou a presidente da Associação Mineira de Teratologia sobre a importância dos Cuidados Paliativos e o alcance internacional da questão.

Saí de lá bastante provocado pelo o que foi dito a respeito do avanço da Medicina no que tange a atenuação da dor de pacientes terminais e daqueles em torno que padecem a perda.

No momento em que se refletia sobre a Vida e a Morte, um destaque para a Dor.

Ontem à noite, também com certeza, fui assistir ao espetáculo estrelado pela Camila Pitanga: “Por que não vivemos?”, de Anton Tchekhov.

A peça trata do conflito entre gerações, das transformações sociais através das mudanças internas do indivíduo, das questões do homem comum e do pequeno que existem em cada um de nós, e do legado para as gerações futuras. Tudo isso na fronteira entre o drama e a comédia, com múltiplas linhas narrativas.

Foi escrita momentos antes da Revolução Russa, quando a sociedade da época estava sendo muito questionada. Há certa apatia, uma paralisia que toma conta das pessoas e Tchekhov parece criticar esse tédio, essa situação que é relatada pelos próprios personagens, que falam de uma vida enfadonha.

“Anna é uma mulher que por um lado tem certa autonomia, uma liberdade de pensar e de expressar seus desejos, mas, ao mesmo tempo, ela está se dando conta de que, mesmo com essa liberdade, há uma condição na qual ela ainda se vê de certa forma presa, atada por algumas amarras”, comenta Camila, que realiza agora seu primeiro trabalho com o premiado grupo de Curitiba.

A atriz, na mesma entrevista, disse que, apesar de ter sido escrita no século XIX, a peça dialoga muito com o presente, especialmente tendo em vista as tensões que têm atravessado o Brasil cotidianamente. Diante das dificuldades impostas pelo contexto de crise e das pressões de um crescente conservadorismo, a artista frisa ser importante não sucumbir à letargia. “A peça nos convida a pensar sobre a apatia e sobre a passividade, que precisa ser furada e transformada”, completa ela.

Claro que há muito a dizer sobre o privilégio de ter vivido estes dois eventos no final de semana, especialmente porque fui um dos eleitos para assistir o Primeiro Ato da peça no palco bem próximo dos atores.

Na apoteose do Primeiro Ato os atores distribuem garrafas de cerveja aos espectadores que estão no palco. A minha foi entregue por Camila.

Dormi pensando na picada. Precisamos ser furados e transformados.

Ah, a Dor!


Até breve.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

GARGANTA




Dia desses, em reunião familiar, perguntei à Lelê com quem que ela se parece. Não me venham dizer que seja uma pergunta capciosa, porque claro que é.

- Com você, vovô...

Olho para os meus netos e procuro neles semelhanças para comigo. Repudio tudo que a mim não corresponde. Já é sabida, por aqueles que comigo convivem, da minha humildade exacerbada.

Não foram poucas as vezes que me peguei olhando para uma foto minha quando menino comparando com uma de Lelê. E também não foram poucas as vezes que expus a tantas pessoas esta foto para dizer quanto Lelê, de fato, me puxou.

Mas a sequência do diálogo acima me encheu de preocupação. Fá, a mãe de Lelê, perguntou:

- E você se parece com o vovô por quê?

- Porque ele é doidinho.

No dia das crianças ela ganhou um estojo de instrumentos médicos: estetoscópico, termômetro, réplicas de brinquedo, naturalmente. Embora ela ande dizendo que quando crescer vai ser médica, convém esperar para presenteá-la com os instrumentos reais.

Na sexta-feira passada, eu estava com ela e o seu irmão Totô brincando no playground do prédio onde moro, quando de repente ela me chama sentadinha em um banco defronte a uma mesa de brinquedo.

- Vem aqui, vovô!

- Que foi?

- Senta aqui na minha frente...

- Já vou.

Ela estava com os instrumentos médicos espalhados sobre a mesa e entre eles um bloquinho para o receituário.

- Senta moço!

- Sim senhora, doutora.

Levantou do banquinho, veio próximo a mim, pediu que eu abrisse a boca e “examinou” minha garganta.

- Moço, o senhor está com a garganta inflamada...

-É, doutora?

- Sim e o senhor vai tomar um remédio... Um xarope e chazinho... Pro senhor dormir direitinho e não tossir, tá bem?

- Sim, senhora. Posso ir?

- Agora pode.



Até breve.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

ZAPQUATRO


“As pessoas pararam de me surpreender tanto, pararam de me excitar tanto. E, em segundo lugar, há a dor.”
“Navegar pela dor é o fardo diário de uma indignidade cotidiana.”

ALMODÓVAR





ZAPTRÊS foi o 1.102º post editado aqui. A grande maioria dos textos foi escrita de um fôlego, sem revisões de qualquer natureza.

Ao terminar de escrevê-los eu buscava uma palavra síntese que pudesse conter a ideia que me assolava. A escrita sempre foi para mim uma saída de emergência.

Coringa é a explicitação de um conjunto de ideias dispersas que me perpassam há décadas. Quando me veio o título no primeiro post que escrevi sobre o filme, quis fazer alusão ao jogo de cartas TRUCO, em que a carta 4 de paus (nomeada como Zap) tem o maior valor e encerra o jogo.

O termo naipe de paus em português é derivado do espanhol, “paus”, se referindo a bastões usados como porrete.

No tarô o quatro de paus pode significar os benefícios que se alcança após um conflito.

No truco, em que me inspirei para cunhar o título, o coringa não faz parte. Ele é excluído do jogo.

Saí do cinema com a sensação de que o filme Coringa “trucou” porque dá conta de uma síntese de tudo o que está aí para ser adquirido. Quem não participa é o herói, aquele homem morcego.

Não pretendo assisti-lo de novo e espero nunca mais. Foi suficiente.

Hoje, de manhã, recebi de um amigo querido o vídeo que integra este post, via zapzap.Não sei se WCA leu a sequência dos posts ZAPs, mas acho que ele me enviou esse vídeo como uma provocação.

Não, não está tudo tão horrível assim.

Há os amigos, por exemplo.


Até breve.




domingo, 13 de outubro de 2019

ZAPTRÊS




“A função dramatúrgica de substituir aquilo que não pode estar presente, ele é uma substituição rica, ele é a carta que pode fechar uma canastra quando você não tem a carta real.”
ANSELMO VASCONCELLOS


Pois é, há ainda muito a explorar de Coringa.

“Tudo o que ouvimos sobre esse filme é que devemos temer e ficar longe dele. Nos disseram que é violento, doente e moralmente corrupto. Fomos informados de que a polícia estará presente em todas as sessões neste fim de semana em caso de ‘problemas’. Nosso país está em profundo desespero, nossa constituição está em pedaços, um maníaco desonesto do Queens tem acesso aos códigos nucleares – mas por algum motivo, é de um filme que devemos ter medo.

Eu sugeriria o contrário: o maior perigo para a sociedade pode ser se você não for ver este filme. A história que conta e as questões que ela suscita são tão profundas, tão necessárias, que se você desviar o olhar da genialidade dessa obra de arte, perderá o que ela está nos oferecendo. Sim, há um palhaço perturbado, mas ele não está sozinho – estamos de pé ao lado dele. Coringa não é um filme de quadrinhos.”

Trecho de um artigo do cineasta diretor de “Tiros em Columbine” Michael Moore, que recebi ontem de uma amiga via zapzap.

Ontem, ainda ruminando, coloquei-me a pensar sobre a fala de Simone de Beauvoir em um diálogo com Sartre: “Vocês fizeram todas as peças”. Ela posicionava o parceiro quanto ao lugar do masculino na feitura da História.

Não “olho” para esta citação na perspectiva do homem masculino, mas de todo aquele que, independente do gênero representa e exerce o lugar de poder discricionário.

Fazendo uma forção-de-barra ou recorrendo à licença poética cheguei a pensar de que essa mãe louca, impotente, vilipendiada por quem a explorou durante décadas, representa simbolicamente a Sociedade.

Em tese - eu disse que iria forçar - a Sociedade aqui como ente de acolhimento, maternalidade, afeto e berço da convivência explorada e reprimida pelo Poder Absoluto, representado em Coringa pelo “pai” de Arthur ou, se quiserem, o Estado.

Ir por aí é se permitir pensar no esgotamento dos mecanismos democráticos e na estruturação das instituições representativas contemporâneos. Claro que não estou me restringindo à nossa realidade, mas no sentido mais amplo, Ocidental.

A cena apoteótica que coloca Arthur no estúdio de TV frente ao ícone do mundo midiático é belíssima, pela explicitação deste esgotamento. O apresentador tenta contemporizar a amargura de Arthur frente a tudo que ele teria vivido até ali:

- Nem tudo está tão mal, Arthur...

- Tudo está horrível! Você é horrível!

Assistam.


Até breve.

sábado, 12 de outubro de 2019

ZAPDOIS




Achei que com o post de ontem havia trucado todo o jogo, mas não, com este coringa ainda há muito a jogar.

O filme é, como quer Canudo, uma síntese de todas as Artes.

Qualquer arquiteto deverá estar atento a inúmeras cenas de Gothan City, especialmente os urbanistas.

Aos escultores, inspirem-se na figura do protagonista como um poço de formas expressivas.

Ah, a literatura! O brilhantismo da narrativa, a construção de cada diálogo, as falas, as metáforas, as metonímias, e a poesia, toda ela denotando o martírio do Ser.

Caramba, a Dança! As coreografias performáticas de Phoenix são um primor. A tensão corporal de cada músculo, notadamente os faciais, os braços, as pernas tudo contorce compondo um corpo em profunda, intensa, dilacerante dor.

A nenhum pintor faltará inspiração se se ativer a fotogramas da película. As cores, a iluminação, a profundidade de seres e objetos, os contornos, as inúmeras composições a serem emolduradas.

E a música? A trilha sonora de Coringa funda a catarse, não há como não se emocionar quando entram em cenas os acordes e a letra da canção surge. Smile, de Charles Chaplin. Não poderia ser outra.

SORRIA

Sorria, embora seu coração esteja doendo
Sorria, mesmo que ele esteja partido
Quando há nuvens no céu,
Você conseguirá...

Se você sorrir
Com seu medo e tristeza
Sorria e talvez amanhã
Você verá o sol brilhando, para você

Ilumine seu rosto com alegria
Esconda qualquer traço de tristeza
Embora uma lágrima possa estar tão próxima
Esse é o tempo que você tem que continuar tentando

Sorria, o que adianta chorar?
Você descobrirá que a vida ainda continua
Se você apenas sorrir
Este é o momento que você tem que continuar tentando

Sorria, de que adianta chorar?
Você descobrirá que a vida ainda continua
Se você apenas sorrir

O singelo, o doce, a leveza, a composição primária e simples.

A cena em que Arthur entra no cinema e se depara com cenas do filme de Chaplin será catalogada para o acervo das eternas. Coringa faz um tributo ao ícone da comédia cinematográfica. É o único momento em que Arthur sorri sem explicitar sua loucura. Seu sorriso está carregado de acolhimento, ali, talvez, ele tenha se sentido verdadeiramente feliz.

O filme Coringa funde-se com o de Chaplin e faz uma belíssima tentativa de denunciar, pela Arte, o horror dos tempos modernos.

Ave, Coringa!


Até breve.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

ZAP






"Loucura é a saída de emergência! Você só precisa dar um passo para trás e fechar a porta com todas aquelas coisas horríveis que aconteceram… presas lá dentro… pra sempre.”
Coringa.

"Nós deixamos de procurar os monstros embaixo de nossas camas,
quando percebemos que eles estão dentro de nós".
Coringa


O cinema me fascina. Fosse outro eu teria o maior empenho em estuda-lo a fundo. Meu desleixo e minha preguiça intelectual me privam do sabor das entranhas que fazem a Sétima Arte.

Esse termo surgiu em 1911, dado pelo teórico e crítico de cinema pertencente ao futurismo italiano Ricciotto Canudo no "Manifeste des Sept Arts" (Manifesto das Sete Artes), documento que foi publicado apenas em 1923.

Através do manifesto, Canudo pretendia distanciar a ideia de que o cinema era um espetáculo para a massa, mas aproximá-la e integrá-la a categoria das Belas Artes, como a Música, Pintura, Escultura, Arquitetura, Literatura e a Dança. Para ele, o Cinema é uma arte “síntese”, uma arte total, que conciliava todas as outras artes.

Outro dia, propus aqui meu voto ao Nobel de Literatura para o Tarantino pelo seu Era uma vez... no Oeste. Não foi à toa.

Ontem fui assistir ao Coringa.

Toda Arte é maior quando sugere múltiplas interpretações. Esse filme, protagonizado pelo soberbo Joaquim Phoenix, nos permite infinitas abordagens.

Se Phoenix, que como um sol toma todas as cenas para si (os demais atores são como planetas orbitando em sua gravidade magistral), tivesse apenas se sujeitado à transformação física e criado a risada que provoca calafrios, seja pelo som emitido ou pela conjuntura de sua existência, já seria suficiente para um belo trabalho. Entretanto, ele vai além ao entregar uma variedade imensa de perfis multifacetados que compõem o personagem, provocando espanto e admiração em doses fartas.

Senti calafrios pelo que se configurava como uma interpretação ao longo da narrativa que propunha a loucura do Coringa, ou melhor, de Arthur Fleck como não apenas justificável, mas, sobretudo, quase perdoável. Acompanhamos a saga de Arthur a cada novo fracasso, assistindo à mudança da meiguice inicial rumo a um personagem cada vez mais duro e decidido, em todas as etapas de uma transformação decorrente muito mais dos vícios da sociedade do que por falhas suas.

“Sou eu ou o mundo está ficando mais louco?”

CORINGA nos deixa perplexos a partir daí. Este personagem ultrapassa a história de um homem e nos convida a pensar em algo que se torna a cada dia mais contundente: o declínio dos modelos civilizatórios.


Este CORINGA nos deixa uma tragédia sem heróis.


“Gothan se perdeu.”



Até breve.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

GROG




A atriz Andreia Horta foi perguntada em entrevista como gostaria de morrer em cena.

- “Discreto e silencioso meu coração pararia de bater e eu morreria elegante, sentada em um trono de rainha olhando para a plateia sob um foco de luz”.

Lindo, não?

Pois é.

Estou lendo Como Viver (*) de Sarah Bakewell, por quem me apaixonei depois de ter lido, dela também, No Café Existencialista. Recorro à orelha do livro para eu me fazer entender.

Excêntrico, preguiçoso, inconsistente, esquecido, Montaigne é o filósofo que quebrou um tabu e falou de si mesmo em público. Mais de quatrocentos anos depois, sua honestidade e seu charme continuam atraindo admiradores.

Leitores o procuram em busca de companhia, sabedoria, entretenimento – e em busca de si mesmos.

Este livro é uma fonte valiosa de pequenos conselhos: ler muito, mas manter a mente aberta; ser sociável, mas nos reservar um “quartinho” só nosso; observar o mundo a partir de ângulos diferentes, evitando assim rigidez nas crenças.

Embora não tenha encontrado uma resposta definitiva, Montaigne nunca deixou de fazer a pergunta “como viver?”, isto é: como equilibrar a necessidade de sentir-se seguro com a necessidade de sentir-se livre?

Como superar a perda de uma pessoa que você ama? Como evitar discussões sem sentido? Como lidar com fanáticos? Como aproveitar ao máximo cada momento, para que a vida não escorregue despercebida por entre seus dedos?

Sarah Bakewell nos convida, na esteira de Flaubert, “a ler não para se divertir, como fazem as crianças, ou para ser educado, como fazem os ambiciosos. Ele nos convida a ler para viver”.

Acho que este post resulta do anterior, quando eu me referia a uma pergunta que alguém me fez sobre a Vida. No sábado passado, quando ocorreu o episódio, eu estava suficientemente embriagado (como se o álcool fosse mesmo necessário para me desnudar), e respondi que “estava pronto”.

Pronto para quê, devem ter se perguntado.

A obra essencial de Montaigne tem como título: ENSAIOS. E toda ela nos sugere a pergunta feita à atriz caput deste post.



Até breve.


(*) Bakewell, Sarah – Como viver, ou Uma biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de resposta/Sarah Bakewell; tradução Clovis Marques – Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

CLAREIRA







Abrimos nossa clareira e então vem a floresta retomá-la. O único consolo é ter vivido a beleza de enxergar a luz entre as folhas: 
em lugar de nada, ter vivido alguma coisa”.
SARAH BAKEWELL

Tenho agradecido à Vida pelo privilégio de, a esta altura, poder “organizar” o meu tempo segundo aquilo a que me proponho dedicar.

Assim, da noite de quarta-feira passada até ontem pela manhã, voltei-me quase exclusivamente aos meus netos.

Movimentei agendas de trabalho, não escrevi, não li, não assisti filmes na telinha e nem na telona, não me ocupei de notícias, desliguei celular, zapzap, emails. Desconectei-me enfim, canalizei toda a minha energia para netar.

Só reguei plantas, fiz compras, lavei vasilhas, em momentos em que os pequerruchos estavam com olhares em outros ocupamentos.

Das seis e pouco da manhã até por volta das vinte e uma horas de todos estes dias, estive plugado na demanda da garotada.

Do preparo da refeição matinal, ao banho e ao preparo para dormir (algumas das noites em cabana montada em meu quarto), foi dedicação exclusiva.

E cada um é um, em tudo. Mesmo que as meninas quase sempre estejam em uma e os meninos em outra. Mesmo que Liz queira algo que Lelê não queira, mesmo que Tim queira só bola e Totô queira cada hora uma coisa outra.

Pela manhã, a refeição: Liz, leite quente com Nescau e uma banana; Tin, vitaminão com mamão, banana, maçã e leite frio; Totô, água no copo primeiro depois leite em pó e um pouquinho de Nescau; Lelê, “esqueminha do vovô”, leite em pó, iorgute de morango e água.

E não necessariamente nesta ordem o que implica em protestos de um e de outro: “Vovô por que você fez o dele(a) primeiro?”.

No sábado, em Santa Luzia, a casa ficou lotada com alguns parentes e amigos para um churrasco. Aliviou um pouco porque chegaram mais sete ou oito crianças.

Pude ocupar-me com um ou outro copo e logo estava “arrumado”. Estando eu em estado catártico alguém (pelas  minhas circunstâncias etílicas não me lembro quem) me perguntou como estava a vida.

- “Eu estou pronto.”, respondi.

Ontem, bem cedo fui levar Pretinha, Liz e Tin ao aeroporto para voltarem para Lages. No retorno, no carro ouvindo músicas, eu pensava em cada um de meus netos.

Ao chegar em casa fiquei por alguns segundos olhando as marcas a lápis que faço no marco de uma porta para medir a altura de cada um dos quatro.

Em algum momento se apagará a largura do tempo.

E como Neruda, poderei dizer: “Confesso que vivi.”.


Até breve.