sábado, 29 de setembro de 2012

BAILAR



Recebemos ontem à noite, em nossa casa de Santa Luzia, a visita de uma grande amiga que nos brindou com passagens significativas de sua vida ímpar.

- “Minha vida dá um livro ou até um filme.”

Ela tinha quinze anos, em meados da década de sessenta, e faria seu debut para a sociedade tradicional belorizontina com cobertura da melhor imprensa local. Frisson geral nas melhores famílias da cidade.

Ela teria que ter um par para a valsa além do pai e do irmão, naturalmente. Em paralelo os pais prospectavam candidatos pertencentes à mesma ou à melhor estirpe e pedigree da família.

- Então, minha filha, quem vai dançar a valsa contigo?

- Não esquentem que eu vou arrumar...

Dez dias antes da festa do glamour ela estava no clube freqüentado pela nata social e se deparou com uma figura masculina, seleção brasileira de vôlei, olhos azuis, louraço.

- “É esse!”. Determinou-se.

Só que o alvo estava acompanhado de uma lourinha inoportuna. Ela não se fez de impedida e partiu prá cima. Ao se apresentar disse que queria que ele dançasse a valsa com ela. O alvo foi fisgado e achou o máximo poder estar com ela em um ambiente alguns (muitos) patamares acima do seu na escala social. A lourinha era irmã do belo.

- Então filha, com quem?

- Vou trazê-lo aqui em casa para vocês conhecê-lo...

- Ele é de que família? O pai é quem e o que ele faz?

- Perguntem para ele no dia que ele vier aqui.

Os pais dela levantaram o dossiê completo do pretendente e ele foi reprovado em vários dos quesitos analisados. Acontece que o jovem era bem jeitoso, diplomático e passou no teste só para a valsa.

- Entendeu, minha filha?

Dia do debut. Ela desceu as escadas do Clube da Hípica ao som da época e ocasião sob os olhares de beldades super produzidas e cavalheiros smokatos com toda pompa e circunstância. Ela estava tão mais linda do que quando conheceu o louraço, que só havia a visto de uniforme escolar, que ele passou por ela no salão e não a reconheceu.

- Ei , rapaz, sou eu aqui!

E foi assim.

A vida não reservou só a valsa. A paixão cresceu recíproca e ultrapassou em muito o debut. E a família dela não aceitou “Romeu”. Não aceitou prá valer, quem viveu a época sabe como eram as normas da TFM – Tradicional Família Mineira. Em mil novecentos e setenta e poucos a coisa era inspirada no período medieval. Por exemplo: hora para chegar em casa, dez da noite, senão era o horror.

Teve um dia que aconteceu. Ela havia ido a um aniversário de uma amiga e voltou para casa depois do limite estabelecido. Tocou a campainha várias vezes e os pais não a atenderam. Ela foi dormir na casa de uma outra amiga.

Desnecessário relatar para quem viveu na época ou mesmo para quem não a viveu imaginar o clima doméstico. No entanto, nada pode ser tão ruim que não possa piorar.

Uma noite os pais foram a um casamento e ela calculou que eles voltariam para casa bem tarde. Estava sendo inaugurada uma nova boate na cidade e ela estava louca para ir dançar com seu “Romeu”.

Seus pais saíram de casa as oito e, às dez horas da noite daquele dia, ela estava dentro do fusquinha vermelho do seu amado com destino à dança.

A coisa tava tão boa na boate que ela só voltou as três da madruga. Quando ela chegou em casa viu, de dentro do fusquinha, seu pai na porta com um revólver em punho. O pai deu quatro tiros. Um em cada pneu do carro do “filho da puta do ladrão de jovens de boa família”. Ela foi tirada do carro a força pela mãe que empunhava um cinto largo do marido. Ela entrou em casa tomando a maior surra de sua vida. Enquanto isto o pai apontava o revólver para "Romeu" para que ele não impedisse a mãe de espancá-la. Da cabeça aos pés ela ficou com as marcas da fivela do cinto e teve que ser medicada.

Seus pais a trancafiaram em um quarto e ela ficou incomunicável. Indignada a família de “Romeu” resolveu interceder e acionou um amigo militar que adentrou a casa dela para salvá-la do cativeiro. Retiraram-a do quarto e a colocaram dentro de um taxi em direção a um médico para examiná-la. Quando ela entrou no taxi o chofer, assustado com os ferimentos da jovem, perguntou:

- Ela estava no ônibus do acidente?

Havia ocorrido um acidente no Viaduto das Almas envolvendo um ônibus que resultou em várias vítimas, inclusive fatais. 

Anos e vários conflitos depois deste episódio eles ficaram noivos e marcaram casamento. A mãe não moveu uma seda e nem um cetim. O pai disse que não queria saber nada a respeito.

Ela mesma costurou o seu vestido de noiva e os das damas. Arrumou espaço em salão e para recepção contratou para que se servisse chocolate e champagne, face às restrições agudas de orçamento. “Romeu”, por sua vez, havia comprado um ninho de dois quartos na Francisco Deslandes.

- Uma gracinha! Eu adorava aquele apartamento...

Dias antes do casamento os pais viajaram e não compareceriam ao evento. Amigos e familiares sugeriram a ela que entrasse na igreja acompanhada por um de seus tios e ela disse:

- Eu vou entrar sozinha, e pronto!

Soava o primeiro acorde da marcha nupcial quando a solitária noiva deu o seu primeiro passo em direção ao altar.

- De que lado eu fico?

- Do esquerdo...

O pai, com olhar severo, entrou sem dizer mais nada e ela achou que tudo poderia ser melhor a partir dali. No entanto, encerrada a cerimônia o padre deu a última benção e ela, emocionadíssima, virou-se para o interior da igreja. Seus pais já não estavam mais lá.

O casamento durou mais de trinta anos. Ela está divorciada há doze.

A noite de ontem, regada à scoth e à narrativa de nossa amiga, ficará na memória como mais um dia  especial em Santa Luzia. Eram dez horas da noite quando nossa querida amiga olhou o relógio e:

- Nossa, já são dez horas?!!! Eu tenho que ir embora...


Até breve.
   

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

ATO



Dois eventos ligados ao processo de julgamento do “Mensalão” merecem nossa atenção: o manifesto de intelectuais e artistas endereçado aos Ministros do STF e a carta enviada a amigos pela Presidente do Banco Rural uma das rés arroladas no processo.

O manifesto:

“Carta Aberta ao Povo Brasileiro
Desde o dia 2 de agosto o Supremo Tribunal Federal julga a ação penal 470, também conhecida como processo do mensalão. Parte da cobertura na mídia e até mesmo reações públicas que atribuem aos ministros o papel de heróis nos causam preocupação.
Somos contra a transformação do julgamento em espetáculo, sob o risco de se exigir --e alcançar-- condenações por uma falsa e forçada exemplaridade. Repudiamos o linchamento público e defendemos a presunção da inocência.
A defesa da legalidade é primordial. Nós, abaixo assinados, confiamos que os Senhores Ministros, membros do Supremo Tribunal Federal, saberão conduzir esse julgamento até o fim sob o crivo do contraditório e à luz suprema da Constituição.”

A carta:

“Caros amigos,
A semana passada estive muito mal. O cansaço e a desesperança se abateram sobre mim. Sei do risco que corro e é claro que sinto medo. Mas descobri que não é o medo que me derruba. Nesses últimos quase dez anos, desde a morte do Zé Augusto, vivi momentos terríveis.
Por muitas vezes me deixei abater, não por covardia, mas por temer que tudo o que eu fizesse, e por mais que me esforçasse para fazer o certo, fosse insuficiente perante as situações que a vida me trazia. Essa sensação de impotência é que nos faz perder a razão de viver. Sim, porque ninguém, em sã consciência, pode querer viver só por "diversão". A vida é dura demais...
Mas Deus é bom e nunca nos abandona. Frases de consolo e apoio como as de vocês, chegam a mim a toda hora e recarregam as baterias da fé.
O sentimento de injustiça dói demais, e nessa vida não temos a escolha de sermos ou não injustiçados. Temos, porém, o livre-arbítrio que nos permite a escolha de sermos ou não injustos... E cada um é obrigado a conviver com a consciência de seus atos. Lá no fundo, cada um de nós sabe o que fez e o que não fez... Por isso estou em paz.
Nos piores momentos do banco em 2004 e 2005, fiquei em desespero. Passei pelas mortes da minha irmã, do Zé Augusto, e finalmente a morte do meu pai, que sinceramente não tive como chorar, pois aconteceu entre as crises do Banco Santos e do mensalão. O pior de tudo foi o pânico que eu tinha de causar prejuízo a quem confiou em mim.
Felizmente, pude honrar todos os compromissos assumidos, e o banco seguiu em frente. As pessoas que se foram continuam presentes em nossas vidas através do nosso amor e dos princípios e valores que nos ensinaram.
Sofro muito pelos meus colegas. Sei o quanto é absurdo eles serem envolvidos nessa história, mas a verdade às vezes é inconveniente...
Apesar disso, temos que ser fortes e continuar lutando pelo que sabemos ser o certo.
Obrigada por todas as orações e pelo carinho que tenho recebido.
Abraços, Kátia.”

A mim não importa muito o desfecho do julgamento em si, mas o que dele resultará. Suponhamos que todos os sentenciados sejam levados para a cadeia e lá permaneçam pelo tempo previsto em suas penas. Caso a resultante se restrinja a comemorações de desafetos ou a dor para os familiares e amigos dos sentenciados não terá valido muito ao essencial.

Qual essencial?

Eu entendo que a conduta deriva da consciência de quem pratica cada ato. Essa consciência pode ser norteada “POR DEVER” ou “CONFORME O DEVER”. Por dever é ato de consciência pura. Conforme o dever é ato por força de sanções que, aquele que o pratica, possa vir a receber por força de lei, convenção ou qualquer outra disposição coletiva.

Eu não mato por que tenho a consciência de que não devo (por dever)? Ou não mato porque tenho consciência de que existe uma lei que me colocará atrás das grades (conforme o dever)?

No essencial espero que o resultado deste julgamento amplie o nível de nossa consciência. Que se amplie o receio da prática de atos criminosos pela aplicabilidade de fato dos dispositivos legais e penais.

No fundo, eu espero mais, que se amplie a consciência do dever pelo dever algo parecido como aquilo que hoje, quando manifestava seu voto, a Ministra Carmem Lúcia declarou:

“Ética é a única forma de se viver em sociedade.”


Até breve.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

PERSEGUIDA I


Ainda sobre PERSEGUIDA.

Recebi recriminações familiares pelo post. De Pretinha, obsceno e de Lé: “Vão censurar seu blog”.

Estou lendo o Relatório Anual de 2011, da “Médicos sem Fronteiras”, instituição que presta serviços humanitários pelos quatro cantos do planeta. Dôo mensalmente uma quantia irrisória ao seu orçamento comparada à magnitude do trabalho que ela presta. Em 2011 eles contaram com 328,6 milhões de euros, 54% do total arrecadado foram utilizados somente para ações na República Democrática do Congo, Haiti, Sudão do Sul, Somália, Etiópia, Niger, Quênia, Zimbábue, Nigéria e Chade.

O Relatório presta contas das ações empreendidas nos diferentes países atendidos. Por exemplo: a MSF em ABECHE, pais do continente africano, realizou duzentas e vinte e duas cirurgias para reparar fístulas obstétricas – ruptura no canal vaginal que causa incontinência e, por vezes, exclusão social. Em JIGAWA, na Nigéria, foram trezentas e noventa destas cirurgias.

Não acho que deva aqui continuar apontando dados do Relatório porque eles sim são chocantes.

O que me parece relevante é problematizar a questão que o episódio na ABL suscita. A palestra censurada estava inclusa no ciclo “O futuro não é mais como era”. Vamos a passos largos para a Inquisição, então?

Continuaremos encobrindo fecundos crimes hediondos sobre o véu da moral e dos bons costumes? Ensinaremos as crianças que é “feio” falar palavrões, especialmente significantes com significados maléficos como esse objeto de censura?

Encobriremos vestes, especialmente das mulheres, para que não seja exposta carne, esse depositário do demônio? Não faremos mais amor e nem sexo e nem cópula e nem foda (me perdoem) com nossas mulheres nuas em pelo, mas cobertas pelas suas sacrossantas camisolas?

Não construiremos anedotas, condenaremos nossa infância, e baniremos Joãozinho para a Sibéria Glacial? 

Nem venderemos revistas com celebridades photoshopostadas para que jovens não corram para banheiros?

Faremos congressos científicos para pesquisarmos sobre o órgão reprodutor feminino, seus odores, sua configuração e suas funções reprodutivas, e só?

Revistinhas de sacanagem, quadros de Picasso e Di Cavalcanti, filmes pornô ou com cenas explícitas e seus nus abomináveis serão queimados em praça pública diante de expectadores eufóricos?

Chanel, Valentino, Dior, Versace, Vuitton, Galtier, Saint Laurent, de Givenchy, Lacroix, Armani, Prada, Ferré, Cavalli, Dolce&Gabbana, Gucci, Rabanne, Galliano, Herrera, Klein, Karan, Lauren,  e tantos outros, vivos ou mortos serão execrados e, como Joãozinho, banidos para a Sibéria Glacial?

Imagens de santos e santas nas igrejas serão esmigalhadas para que aqueles olhares orgásticos sejam banidos do humano, terreno, mortal e eterno pecador?

O futuro então nos tornará afinal puros? A razão fundamental do caos presente na Política, na Moral, na Religião e nas Leis decorre da deslavada e escandalosa forma e pública com a qual lidamos com significantes e seus significados abomináveis? É assim, tão simples?

Imortais da Academia Brasileira de Letras? Eu não. Prefiro ir para os infernos, com buceta na boca.

Entre Guilhotina e fuzilamento sumário prefiro garrote vil.


Até breve.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

PERSEGUIDA



Primeiro dia de aula. A professora acabara de entrar em classe e:

- Bom dia, meus alunos, eu sou a nova professora de vocês. Meu nome é Vlagina.

Joãozinho interessou-se imediatamente, embora já imaginando que aquilo não ia acabar bem. No dia seguinte, a professora entra em sala de aula e:

- Bom dia, meus alunos... Quem se lembra do meu nome?

Silêncio.

- Quem se lembra do meu nome? E aponta para Joãozinho para que ele responda.

- Eu sei professora...

- Então diz.

- É que eu estou com uma dúvida... Eu não sei se o “L” é na frente ou no meio...

- É no início, Joãozinho...

- Ah, eu sei.

- Então fale o meu nome, menino.

- Bulceta.


Li hoje, no O Globo, notícia de que na semana passada a Academia Brasileira de Letras (ABL) censurou a transmissão ao vivo, em seu site, da conferência ministrada pelo professor da Unicamp Jorge Coli, “O sexo não é mais como era”. Ao apresentar o quadro pintado em 1866 pelo artista francês Gustave Coubert “A origem do mundo”, exposto desde 1995 no Museu d’Orsay, em Paris, e usar a palavra “buceta”, a transmissão foi cortada.


 Arte Pintura Nu Coxas Sexo Mulher Realismo Courbet Origem Mundo Erotismo Pornografia


Por sua vez a  iTunes Store, livraria virtual da Apple, censurou o título do livro da escritora americana Naomi Wolf. O título é: “Vagina: Uma nova biografia”. O site da Apple coloca como “V****a”.  Na descrição do livro há uma explicação: “A autora faz uma pesquisa histórica e mostra como a v****a foi considerada sagrada por séculos até ser vista como uma ameaça.

Não há limite à hipocrisia. Tudo bem que a explicitação choque, mas censurar o óbvio é chocante. Choque por choque prefiro o que nela se encerra que é prazeroso às pampas e, para quem não sabe e já passou dos cinco anos de idade é por ali sim que tudo acontece. Adão e Eva são personagens de livros para neandertais.

E mais, trago isso agora porque já é passada a hora de tanta puritanagem encobrindo crimes hediondos. O que deveríamos estar censurando são atos libidinosos explícitos do cotidiano imoral de quem deveria nos trazer exemplos.

Fiquei literalmente puto.


Até breve.




sexta-feira, 21 de setembro de 2012

LUGAR



Quem olhe pelas janelas dos apartamentos vizinhos deve se encantar, embora não consiga ver tudo o que se passa.

Ontem, por exemplo, foi possível assistir a uma cena. A jovem sentada na poltrona da sala, de quando em vez se levantava e, numa coreografia que se assemelha à caça de borboletas, dava saltos e com as mãos parecia querer capturar insetos.

Eu, que assistia e participava in loco da cena, tentava acalmar a jovem em sua empreitada.

- Pretinha, mas é só um pernilongo...

- Fecha a porta da sala, pai.

- Por que, filha?

- Ele pode ir para o quarto da Liz.

Assim tem sido. Vinte e quatro horas de dedicação exclusiva. Maternidade pura e plena.

- Pai, não brinque com ela quando ela estiver querendo dormir.

- Ela está querendo brincar, minha filha... Está olhando prá mim...

- Mas não brinque... Cante mais baixo, pai, senão você excita a menina e ela não dorme... Não balance muito, pai, ela acabou de mamar...

- Eu não estou balançando, filha, eu estou ninando...

- Ande só... Devagarinho. Você não vai descer as escadas com ela dentro do carrinho não, vai pai? Pai, põe o carrinho lá embaixo, depois vem buscar a Liz... É perigoso... Não deite ela assim não... Deixe ela de pé no seu colo... Depois que ela arrotar aí você pode deitá-la.

Vocês poderão considerar excesso de proteção por parte de Pretinha. Não é não, é pior. É puro afeto. Muito pouco tem interessado a ela do que não seja relacionado à filha.

Eu já disse aqui inúmeras vezes de quanto sou grato à vida, mas nada me dá mais motivos para fazê-lo do que estar podendo, diariamente, salvo poucas ausências, acompanhar o desenrolar de Pretinha enquanto mãe.

- Pai, essa noite ela dormiu cinco horas seguidas... Pai, ela agora já acompanha a gente com o olhar.

- Sei, e eu posso brincar com ela?

- Só quando eu disser.

- Tá bom.

- Ela é uma belezinha, não é vovô?

- Líndica!

Eu imaginava passar por uma experiência extraordinária com minha neta. Só que, antes de ser com Liz, tem sido com minha filha Pretinha.

- Pai, com quantos meses eu poderei engravidar novamente?

- Sua mãe ficou grávida de você depois de cinco meses do nascimento do Lé.

- É. Foi mesmo.

Tipo do diálogo que me interessa.  



Até breve.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

UTOPOS




Hoje estou naqueles dias.

Seria melhor nem tentar postar. Todas as vezes que isto acontece, acabo escrevendo tolices. Posso inclusive partir para comentários impertinentes, denúncias inoportunas, juízos extemporâneos sobre questões que não afligem e nem interessam a ninguém.

O problema é que a exigência pessoal, essa auto e alta cobrança por escrever quase diariamente acabam desaguando em textos chocos, sem pé nem cabeça e que, ao final, o leitor se pergunta: prá que mesmo eu entrei nesse blog?

Então é melhor parar por aqui e pedir desculpa ao leitor esperando que ele retorne em outra oportunidade.
Se bem que há um tema que eu explorei pouco e que pode preencher este espaço. Por favor, leitor, siga comigo.

Trata-se da necessidade de utopia. O cineasta Caca Diegues disse em entrevista que “o fato de as utopias não se realizarem não significa que os utópicos sejam idiotas. Idiota é a realidade que não foi capaz de seguir os sonhos utópicos.”

Tem aí fora um mundo em ebulição enquanto tocam, as pessoas, o seu cotidiano. A elas, no micro, importam suas questões mais imediatas como ganhar dinheiro, comprar isto ou aquilo, amar aquele sujeito, ter filhos, viajar, casar, essas coisas. As pessoas não têm nenhum tempo para se ocuparem daquilo que não lhes causam.

Eu até acho bom, porque assim, cada um acaba dando conta do que lhe cabe. O candidato à presidente do império tem lá sua razão, mas ele mesmo foi rechaçado. Agora sobra um mundo por construir, sei lá. Alguma coisa que seja pensada não para o futuro porque o futuro não importa agora, mas algo que seja possível e factível nesse momento em que você lê este post.

Na juventude elucubrava-se para adiante. Hoje, pelo que me conste, anda-se de farol baixo. Pouca gente se agiganta no tempo. Posso entender, como já disse: o imediato é que paga as contas.

Afora os acadêmicos, os eruditos, os artistas Cult, os fodões da Kultura tá difícil encontrar uma pega para se segurar e ter graça. Há muito tempo rola no conjunto um destrambelhar de muito. Na moral, na política, na religião, na lei. Sendo puritano, esquerda, gnóstico e de acordo, acho de perigo.

A humanidade demanda propósito e não acho que pode ser só este de ir tocando a vida com suas querências e obtenções de consumo. Deve de ter um trem aí para governar os fazeres e, sobretudo, os poderes e os porqueres.

Tem uma repetição aí e de há muito, só neste blog, se você pesquisar em posts vários você vai concluir de mesmo. BANAL está catalogado em ficção, mas outro dia mesmo chacinaram uns que nem Trê, Chapal, Son, Saci, Nei Fumaça e Margarina na baixada fluminense. Na real. Toda hora tem seis, ou mais. Kel da hora não teve desenvolvimento: ontem encontraram uma aos quatro anos de idade, jogada em um beco, morta por hemorragia latente decorrente de estupro.

A utopia do possível é ter um olhar para isso e no mínino ter presente.

Mesmo no distante há que se ter de olhar. Não vêem bem Japão e China, a coisa pegou forte nas charges francesas e hoje a notícia que vai dar de revista alemã também. Síria com seus cento e poucos enterrados por dia já perde importância.

Tem um mundo em combustão que dói.

A utopia do presente é fazer isto ser objeto de ocupação no comum e não algo que se passa fora de nossas cercas. A desalienação pode ser o começo de uma energia que possa nutrir uma nova Moral, uma nova Política, uma nova Religião, uma nova Lei.

Tudo isto por Pretinhas e Lizes.


Até breve.  

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

SINAL


Marisa Albuquerque sempre foi desse jeito. Ninguém, nem mesmo os mais próximos, tinham por ela alguma simpatia. O marido e os dois filhos a toleravam por força de circunstâncias.

Até que um dia, em um ônibus urbano, ela conheceu Antônio de Souza, um guarda noturno.
Ela voltava para casa após o trabalho e ele, amavelmente, cedeu a ela a passagem na entrada do coletivo. Marisa não agradeceu a gentileza e nem sequer olhou para Antônio.

Já dentro do ônibus um rapazinho levantou-se da poltrona e cedeu o lugar para Marisa. Da mesma forma ela não agradeceu e sequer olhou para o gentil rapazinho. Antônio, de pé, um pouco atrás do lugar onde Marisa havia assentado viu quando uma senhora puxou conversa com Marisa e ela sequer olhou para o lado, deixando a mulher constrangida.

Quando Marisa preparou-se para descer do ônibus, Antônio passou à sua frente e colocou-se próximo à porta de saída. Marisa descia o primeiro degrau quando Antônio colocou o pé na sua frente e ela precipitou-se ônibus a baixo, estatelando-se na calçada.

O rapazinho que havia cedido o seu lugar e a senhora que havia puxado a conversa exclamaram em uníssono:

- Bem feito!

Antônio desceu e:

- A senhora se machucou?

- Você me calçou, seu merda!

- A senhora que tropeçou no meu pé...

- Foi você que me derrubou.

Antônio pegou pelo braço de Marisa para ajudá-la a se levantar.

- Me larga... Eu me levanto sozinha...

Antônio disse às pessoas que se aglomeraram no momento da queda que ele cuidaria da acidentada e ao motorista do ônibus que ele poderia seguir viagem. Uma senhora saiu da casa onde morava, em frente ao ocorrido, com uma bolsa de primeiros socorros e convidou Marisa para entrar. Antônio de Souza acompanhou-as apesar dos protestos de Marisa.

- Vou levar você até a sua casa...

- Não preciso que ninguém me acompanhe...

Feita a limpeza dos ferimentos e curativos nas escoriações nos braços e pernas, Marisa deixou a casa sem sequer agradecer a mulher que havia lhe socorrido. Quando passavam pelo portão a senhora comentou com Antônio:

- Que mulher mais mal agradecida...

Quando começavam a caminhar:

- Não quero que você me acompanhe.

- Por que você é assim?

- Vá à merda!

- Em que rua você mora?

- Não te interessa!

Assim foi até que Marisa ligou seu celular.

- Jurandir?

- O que é, mulher?

- Tem um homem me seguindo...

- E daí?

- Daí que ele não larga de mim...

- Onde você está?

- Perto de casa, na Rua do Ouvidor, perto da padaria...

- Entra na padaria e me espere lá dentro.

- Tá bom.

Assim ela fez e Antônio resolveu não acompanhá-la a partir dali. Antônio a viu seguir e sequer voltar o olhar quando virou em uma esquina.

Na noite do ocorrido ela não conseguiu dormir. Debateu-se na cama sem conseguir tirar o rosto de Antônio da memória. Ela tinha certeza de que fora ele que deixara o pé de tal maneira que ela tropeçasse e caísse.

Nos dias seguintes Marisa de Albuquerque pegou o ônibus na expectativa de rever Antônio de Souza. Por diversas vezes chegou mais cedo no ponto e aguardou mais do que de costume para ver se ele apareceria.

Nunca mais o viu.



sábado, 15 de setembro de 2012

HUMUS



- Guilherme!

- Oi, mãe...

- Quem foi que quebrou esse negócio?

- Num fui eu.

- Então quem foi?

- Um ladrão.

- Que ladrão, menino?

- Um preto...

- Preto?!!!

- Não, mãe... Cinza.

- Que história é essa, menino?

- É. Ele tem uma máscara preta grande...

- Mãe, eu acho que é o mesmo ladrão que pegou o meu batom e saiu riscando a parede...

- Ana, será que ele veio nos seguindo até aqui?

Essa e outras histórias preencheram a chegada, essa madrugada, de Rij e Perez em Arraial d’Ajuda, onde estamos desde a noite de quinta-feira. O protagonista é um sujeito de quatro anos e meio de idade, um dos netos de Perez e Rij. Ana Clara é sua irmã de treze.

- Que é isso, Guilherme? O que você está fazendo com essas cartolinas?

- Uma pirâmide, vô...

- E prá que ela serve?

- É onde moram as múmias...

- Múmias?!!!

- É, vô.

- E onde ficam estas pirâmides?

- No Egito.

- O que é Egito, menino?

- Um lugar cheio de areia.

Somada a estas, na praia W comentou conosco que um sobrinho dele encontrou um amigo nosso na empresa onde trabalha. Saiu um assunto relacionado à empresa onde W trabalha. O sobrinho dele disse que o tio trabalhava na tal empresa.

- W? Teria perguntado o nosso amigo comum.

- Sim. Você o conhece? Perguntou o sobrinho.

- WC?

- Ele mesmo.

- Comi muito...

Conosco está também D. Mar de oitenta e um anos de idade, mãe da esposa de W. Se ela é hilária, poucos minutos de praia depois, apreciadora de água que passarinho não bebe, D. Mar fica impagável.

- Vocês acham que eu bebo porque eu gosto? Não, eu bebo porque preciso.

Não deve existir vida com qualidade muito melhor do que estar junto a pessoas agradáveis e em lugar paradisíaco como a Praia Rio da Barra. Dosado à álcool em medidas que levem a um estado nirvânico de alma, rolando uma conversa em que o humor é o fio condutor de todos os assuntos, um banho ou outro em azul.

Tá bom, é verdade. Pode ser mesmo um privilégio.

Eu aqui com minhas quase certezas tenho prá mim que é fruto de uma construção cuidadosa de vários anos em que se foi tecendo os laços que nos unem nesse respeito e afeto recíprocos.

D. Mar, W e sua esposa, Perez e Rij em um dia inteiro de convivência inundaram nossa vida de algo que de quando em vez ocorre: o prazer de compartilhar companhia para dar ao singelo e adorável ócio um sentido inesgotável à vida.

Dentro de uma Kombi que nos levou da Mucugê, onde fica a casa de W, até a Praia Rio da Barra, Ela soltou uma de suas máximas:

- O amor não existe!

Apenas para nos deixar ainda mais claro que sentimentos não são para serem trazidos à linguagem, mas experienciados como a um sumo que demanda que se renove a cada sorva.

Ainda se tudo não bastasse, Pretinha via WhatsApp enviava fotos dando conta de por onde andava Liz.

Tem hora que eu sinto que pego na vida.


Até breve.