sexta-feira, 28 de setembro de 2018

GODOS




Há, provavelmente, outras verdades irrefutáveis além de que no futuro todos nós morreremos.

Tenho para mim que entre estas, está a de que é inerente à Política a dissonância entre discurso e prática.

Na Política, enquanto o discurso vai ao encontro das demandas, a prática vai, muitas das vezes, de encontro às demandas e ao encontro de interesses.

Não tenho ainda cem anos, portanto, acredito poder viver mais. Não é de todo uma verdade irrefutável, talvez um desejo caso esse corpo, coração e mente seguirem com essa higidez presente.

Ao longo do período passado e aqueles que estão por vir, não acredito que estas duas verdades deixem de ser irrefutáveis. A de que eu vou morrer e a de que na Política tudo continuará como dantes no quartel de Abrantes.

Ou seja: seremos iludidos pelo discurso presente e nos indignaremos pelas práticas futuras.

Gosto também da ideia (me divirto com certa amargura) de que na Política há lados movidos por propósitos ideológicos. Aqueles que se colocam em uma perspectiva progressista, mais à direita e outros mais conservadores à esquerda. Uns que defendem a livre iniciativa (à direita) e outros a intervenção do estado na economia (à esquerda).

A melhor é que alguns defendem a social democracia e outros os trabalhadores. Há ainda os que defendem as minorias, o meio ambiente.

Há aqueles que lutam pelos cambaus.

Sim, o discurso é muito bem aparelhado quanto mais profunda for a ignorância e ingenuidade dos que elegem, aqueles que clamam por alguém que governe suas próprias e desafortunadas vidinhas.

Na prática aqui como acolá, os interesses comandam o espetáculo. Mais para o hemisfério sul, território das republiquetas, a coisa vinha ficando pornográfica. Os últimos mandatários, em todos os níveis (federal, estadual e municipal) pilharam os cofres, zombaram a achincalharam seus ingênuos eleitores.

A coisa somou bilhões.

Nunca na história deste paiseco se roubou tanto.

A tragicomédia atual tem um enredo mais assustador. A briga está vendendo a ideia de que o mal é o passado e o contrário do mal é o não sabido. Quem está escolhendo o faz na perspectiva daquele que melhor pode derrotar o que mais detesta.

Enquanto isto o sol brilha nas riquezas naturais, na docilidade do povo primitivo, na idiotia dos intelectuais, na falência da cultura, na conveniência das elites.

Eu mesmo embarco hoje para as oropa. Pulo o primeiro turno. Se tiver segundo turno voto no 69 e ligo o phoda-se.


Até breve.

terça-feira, 18 de setembro de 2018

SERPENTES





Estou lendo Ascensão e Queda de Adão e Eva, de Stephen Greenblatt, vencedor do Prêmio Pulitzer, edição da Companhia das Letras.

“Deus criou Adão e Eva, o primeiro homem e a primeira mulher, e os pôs, nus e livres de vergonha, num jardim de delícias. Disse-lhes que poderiam comer o fruto de qualquer uma de suas árvores, com uma única exceção. Não poderiam comer da árvore da consciência do bem e do mal; no dia em que violassem essa única proibição, morreriam.

Uma serpente, o mais ardiloso dos animais do campo, pôs-se a conversar com a mulher. Falou-lhe que desobedecer à ordem divina não os levaria à morte, mas que lhes abriria os olhos e os tornariam semelhantes aos deuses, conhecedores do bem e do mal. Acreditando na serpente, Eva comeu o fruto proibido. Ofereceu-o a Adão, que também o comeu.

Os olhos deles realmente se abriram; ao se darem conta de que estavam nus, juntaram folhas de figueira para se cobrir. O Senhor os chamou e perguntou-lhes o que tinham feito. Diante da confissão, Deus anunciou várias punições: daí em diante, as serpentes rastejariam sobre o ventre e comeriam o pó; as mulheres teriam filhos com dor e desejariam os homens, que as dominariam; os homens seriam obrigados a ganhar seu sustento com suor e fadiga, até que retornassem à terra de que tinham sido feitos. Pois tu és pó, e ao pó tornarás.

Para impedir que eles comessem o fruto de outra das árvores especiais – a Árvore da Vida – e vivessem eternamente, Deus expulsou-os do jardim e pôs de sentinela querubins armados, para evitar que votassem.”

Pois é.

A cada quatro anos, na cena política, figuras mitológicas nos assombram com suas estórias fantásticas, obnubilando nossa frágil consciência. Alguns simples mortais são tomados de tal fervor que passam a crer na construção de paraísos jamais habitados.

“Durante toda a vida fascinaram-me as histórias que inventamos na tentativa de dar sentido a nossa existência, e vim a compreender que ‘mentira’ é um termo de lastimável inadequação quando aplicado ao tema ou ao conteúdo dessas histórias, mesmo quando fantásticas.

A humanidade não pode viver sem histórias. Nós nos cercamos delas, as criamos ao dormir, as contamos aos nossos filhos e pagamos a outras pessoas para que as contem. Há quem as invente para ganhar a vida.”

Surpreendente como, desde os primórdios, somos tomados por elas, mesmo que ultimamente elas têm se tornado tão sinistras.

As estórias que me contam agora, confesso, não têm me feito dormir.


Até breve.


sexta-feira, 7 de setembro de 2018

INTERTINOS




Quem esfaqueou? Quem foi esfaqueado?

À margem especulações de qualquer natureza das motivações e da extensão - se lesão corporal, tentativa de assassinato ou atentado - permito-me refletir sobre o episódio ocorrido um dia antes que comemoramos nossa independência.

O que encerra o ato? A quem se destina?

Vejo cada um de nós fusionado tanto naquele que atua quanto naquele que é afetado pelo ato. Tornamo-nos todos beligerantes e vitimas de nossa beligerância. Nunca fomos tão agressivos, violentos, bestiais, desumanos.

Tudo bem, uns mais outros menos, mas todos têm agravado o universo em que vivemos. Seja pela ação, seja por omissão, seja por incitação, seja por conveniência, seja por que razão for, estamos sujeitos e submissos à nossa parcela mais do que abominável enquanto seres supostamente racionais.

São incontáveis as evidências de nosso desastre estampadas pelo cotidiano, desgraças que se incorporam à paisagem e que não nos causam porque se sucedem com tal frequência que, bem nos refizemos de um golpe, sucede outro maior ou mais daninho.

Paradoxalmente evoluímos em anos o que demorávamos séculos para descobrir em qualquer campo da ciência e da tecnologia. No campo das relações mais próximas, contudo, temos fracassado sistemática e profundamente.

Hoje, não deveríamos louvar nossa independência. Essa festa é caduca. Arcaico colocar nossas forças bélicas em parada, nossas crianças repetindo valores de superfície. Nossos governantes e suas vestes pudicas. Nossos palanques demoníacos.

Deveríamos nos convidar à interdependência, face ao tempo presente. Urge que façamos um exame de consciência: quanto tenho contribuído para que esse estado de violência se torne agudo?

Parece que não, mas reflita. Você se encontrará em algum ato, seja como agressor ou como vítima.

A faca transita.


Até breve! 
(Se houver amanhã...)