domingo, 30 de outubro de 2011

REPARO

Perguntei à Dona Ismênia, ela não havia completado ainda seus oitenta anos de idade, qual o acontecimento mais importante da sua vida. Dona Ismênia não precisou muito tempo e nem expressou dúvida: “quando eu me formei para professora.” Ela tem três filhas famosas: Leusa, nas letras literárias, Ligia no ambiente das Leis e Lizete, caçadora de cabeças para o mundo corporativo.
Dona Ismênia hoje insiste em viver em Campinas, sozinha, em um apartamento imenso que ela mesmo cuida, próximo ao de Lígia. Ela faz questão de ter autonomia, espaço e ter sua própria vida. Leusa mora em São Paulo. Nós fomos privilegiados pela permanência de Lizete em BH.
Liz, como gostamos de chamá-la, é casada com Paulo Rogério, o Roger, um figuraço. Eles têm uma filha, Alice, que fará, dia 10, dezessete anos. Está agora em intercâmbio nas Oropa e fazendo balé nos arredores de Paris. Um Luxo!
Alice tinha uns dois anos de idade, quando nos deixou uma marca: Isquitio era como ela se referia ao nosso sítio em Santa Luzia. Há outra, talvez ela estivesse com quatro anos de idade: nós tínhamos um cachorro e Alice fugia do animal. Certa vez, seu pai perguntou a ela: “Desde quando você tem medo de cachorro, Alice?”. “Desde novembro”, respondeu.
Nós temos um mundo de amigos. Esse mundo é formado por diferentes países com membros de compusturas e desnaturezas diversas. A gente, então, gravita por vários desses países de tempos em tempos. Há países mais freqüentados, outros menos. Há países que deixamos de freqüentar por diferentes razões, há alguns que não retornaremos e há outros tantos que virão e que alargarão ainda o nosso dinâmico mundo de amigos.
Liz faz parte do mesmo país onde estão aqueles amigos citados no post anterior. Num tem jeito de estarmos em um país sem sentirmos a presença de todos os seus membros, mesmo que ausentes. É natural que nem sempre seja possível cada país de amigos integrar-se pleno por diferentes razões, inclusive descomjunturas da vida. Assim, Liz e Roger, embora não puderam estar conosco, fizeram integralmente parte do último final de semana em Ajuda. Mal sabem eles de quantas intrigas e diz-que-me-disse foram personagens. Eles estavam lá, só não foram “à praia” conosco.
Em todos os meus aniversários recebo de Liz algo especial. Há uma escultura de coruja de ferro fundido vazado em cujo interior é fixada uma vela. Desde que a ganhei está dependurada no patamar da escada que dá acesso à suíte principal da casa em Santa Luzia. Tenho uma caixinha para colocar os controles remotos do som e da TV. Tenho um boné que sei, exatamente, o que ela quis dizer ao presentear-me com ele.
O caderno “daqueles bonitos... com papel reciclado... coisa chic”, para eu contar histórias, foi parar nas nuvens.
Até breve.

PS: Nesse país há ainda outro casal, Lidynha e Tatá, mas é assunto para outro post.

domingo, 23 de outubro de 2011

AJUDA

A vida tem nos imposto alguns diz sabores. Obrigo-me, assim, a relatar os mais recentes. Primeiro, breve, já que freqüente. No sábado, dia 15, recebemos em nossa casa em Santa Luzia, para um capelete regado a vinhos, Sandra e sua mãe Emir, Gustavo e Mohana, Camila e Lindinho e nossa filha. Divertimos muito com quanto tem sido expressiva para Emir e Sandra a construção de suas casas, uma ao lado da outra, no nosso condomínio.
A obra já movimentou uma pá de terra elevando em quase dois metros os quatro mil metros quadrados de platô para uma obra de mil e quinhentos metros quadrados de área de construção, contando as duas casas e área de lazer com uma piscina infinita lançada sobre o vale. Emir e Sandra disseram-me que terão muitos motes para os meus posts. A mim interessa a conclusão das obras. Vai ser sacrificante sobrevivermos finais de semana quando, independentemente de sermos convidados, estarmos com elas.
Ouvimos, também, a saga de vinte e poucos dias que foi a viagem de Gustavo e Mohana à Alemanha e à Itália na companhia de tios maternos dela. Um horror hilariante, principalmente pela impagável forma de relatar do Gustavo: uma ópera bufa.
Na quinta-feira, 20, voamos Azul ao meio-dia para Porto Seguro e, no aeroporto, fomos recebidos por Bira o motorista que nos levou ao Arraial d’Ajuda para a casa de WCA e Ana, onde passamos o final de semana na companhia ainda de RIJ, PRZ, FTA e Clara.
Ana, a dona da casa, foi quem nos recebeu. Com sua imensa antipatia e péssimo humor peculiares, nos saudou aos gritos. WCA só chegou á noite junto com os demais. Ana nos mostrou a casa. Foi ela quem acompanhou a construção, recente. Cada coisa pensada e executada com uma propriedade, bom gosto e carinho ímpares. Casa de autor. Para nós, Ana reservou uma das três suítes do segundo andar, acomodação esquisitíssima, no sentido espanhol (já, já entenderão porque).
Tipo quatro horas da tarde almoçamos os três: Ela, Ana e eu. Restaurante Rosa dos Ventos, um badejo envolto em folha de bananeira, apenas para sinalizar como seriam os próximos dias. Uma irmã de Ana perguntou, ao final de uma temporada na casa de WCA e Ana, se poderia embarcar no avião coberta por uma canga, já que havia engordado a ponto de suas calças compridas não lhe servirem mais.
Depois do almoço passeamos pelo comércio da Rua Mucugê. Em uma das lojas a TERIMA KASSIH, cuja tradução livre para o português é muito obrigado, voltamos todos os dias. Móveis, adornos, tapetes e outras maravilhas importadas da Indonésia distribuídas em dois andares. Um show. Mesmo para quem não gosta terá que reconhecer que há muita arte e exotismo em todas as peças, especialmente aquelas cunhadas em madeira. Senti um tremor de plástico no meu bolso cada vez que adentrei o estabelecimento. Estamos, como sabem, em estado de reforma de apartamento.
WCA, PRZ, FTA, Clara e RIJ chegaram perto das 23:00 horas. Aí, como diz a madre superiora: fudeu! Clara, já naquela hora, iniciou seu repertório de piadas. Mais obscenas, impossível. FTA, todo pegajoso, nos lambendo; PRZ cadê a Seleta (caninha, para quem não sabe) e RIJ saltitante em seus recentes 50 ou 51 quilos. WCA, o dono da casa: Pô, que maravilha! Pô, que maravilha... Vocês estarem aqui...
Passada a intensidade da chegada a idéia foi de jantarmos uma carne com inhoque no Restaurante Manguti, mas o encontramos fechado aquela hora. Melhor, porque rolou uma pizza no La Morocha, um tipo pub com banda cover dos Beatles de arrepiar.
Na sexta-feira, logo cedo, fui intimado pelo PRZ a conhecer sua fazenda a uns cem quilômetros de distância do Arraial. Dirigindo o carro ele foi relatando a facilidade com que amealhou o patrimônio pecuário. Desde a década de 70 ele comparece à região onde já teve duas outras propriedades antes da atual. Viajava, naquelas épocas, uma penca de horas em ônibus de Salvador até ali, nos finais de semana, saindo as sextas, chegando aos sábados e saindo aos domingos. Uma luta. Não havia acesso à propriedade e por várias vezes teve que cobrir o percurso de 4Km a pé. Dez milhões de reais de valor de patrimônio depois, PRZ virou um menino quando chegamos à fazenda. Que alegria do cara em mostrar-me o que realizou dentro dos 16 Km de perímetro de sua terra desejada aos longo dos últimos quarenta anos. De lá, já no final da tarde, trouxemos um carneiro já temperado pela Marinalva, esposa do Aílton, os administradores da fazenda. Ovos caipira, leite, massa congelada de graviola para suco e dois cachos de coco.
Ao chegarmos, encontramos FTA e WCA em estado lastimável. A turma nos esperava para o almoço, isso quase seis horas da tarde. FTA, apesar do estado avançado de ingestão alcoólica, preparou duas caçarolas de camarão ao alho e flambadas com conhaque espargido pelo WCA. Um perigo! Tinha mais álcool no fígado dos caras que na garrafa de conhaque recém aberta.
Mais tarde, as moças saíram ao comércio, nos encontrariam para jantar no Maguti, afinal a carne com inhoque. Fomos sem o WCA, ele deu perda total, deixamos o cidadão escornado em um dos sofás da sala. Eu e PRZ, monitoramos o percurso inenarrável de FTA até o restaurante. Quando chegamos ele procurava sua Clara aos gritos: Cadê minha mulher... Cadê minha mulher...
Na manhã seguinte, durante o café da manhã, rimos muito dos ocorridos da noite anterior. WCA relatou, por exemplo, que de repente se viu acordado e supostamente lúcido: estava pronto para outra. Fomos todos à praia e esbarramos no bar do Néo e da Dina. Dina, a gourmet, é de Guaratinga, terra da fazendo do PRZ. Saímos de lá nutridos de um peixe frito e um arroz de polvo esquisitíssimos. Alí, no bar, Ana encontrou Paula, uma chilena artesã que vendeu para as meninas essas pulseirinhas de tornozelo que passaram a ser a credencial para adentrar a casa de WCA e Ana. Esquisito foi trazido por Paula: em espanhol quer dizer especial, delicioso....
Encerro aqui o relato, apesar de tantos contares ainda serem necessários até a partida de volta, porque o post está a serviço de um propósito: qual o sentido da vida, uma pergunta que acomete-me desde o primeiro post para memorar os meus sessenta anos.
Pedi a Clara e a RIJ que me dessem um mote para o blog. Uma e outra, em que pese por vias distintas, provocaram-me: riqueza. A vida se faz pela via do vínculo, da relação com pessoas como WCA e Ana, PRZ e RIJ, FTA e Clara, que há mais de vinte e cinco anos de convivência nos ajudam a tirar o melhor da vida. A eles, nosso:
TERIMA KASSIH!
Até breve.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

VERDADE

No meu último post disse que os próximos trariam textos mais interessantes. Alguém comentou comigo que alguns dos meus textos estimulam a leitura da partida até pouco mais da metade, levam ao leitor ao interesse de seguir, mas quase sempre ao final, deixa certo desapontamento.
Todo orgasmo é um desmancha prazer.
Em 1934, Bertolt Brecht dramaturgo alemão escreveu e divulgou na Alemanha hitlerista, um texto: “Cinco maneiras de dizer a verdade”. Para Brecht, na época, quem quisesse lutar contra a mentira e a ignorância e escrever a verdade, teria que superar ao menos cinco dificuldades. Deveria ter a coragem de escrever a verdade embora ela se encontrasse escamoteada em toda parte; deveria ter a inteligência de reconhecê-la, embora ela se mostrasse permanentemente disfarçada; deveria entender da arte de manejá-la como arma; deveria ter a capacidade de escolher em que mãos seria eficiente; deveria ter a astúcia de divulgá-la entre os escolhidos.
Há de Adolf Hitler uma pérola para a ciência política: “Todo homem bem informado é um homem perigoso.”
Como escrever a verdade nos dias de hoje se ela já não consegue mais enganar a ninguém? A verdade não interessa. Pode-se denunciar em qualquer instância e em qualquer fórum que a verdade confunde, já que não se estabelece. Afinal, onde está a verdade?
Penso que ela se perdeu pela ausência do mistério e pelo desinteresse da autêntica e original procura. Tudo se explicita e de tal forma que tudo já se sabe ou vai se saber e em tantas opções de descoberta que nos enfastia. A infernet nos esgota.
Coragem, inteligência e arte são de uma época em que o dizer só poderia ser dito pela via da metáfora, sob pena de se perder a liberdade ou mesmo a vida. Entre nós jovens da época havia uma máxima: “Falou e disse.” Essa nossa expressão estava carregada de sentido, porque no pequeno e no grande ela queria dizer de uma verdade. Fora dessa éramos taxados de CARETAS, portanto, falsos ou fora da onda que nos endereçava a um novo mundo.
Difícil construir sessenta anos de idade e olhar para o que sobra ao ambiente onde se debruça a vida: abundância e efemeridade. Tudo é muito, por demais, rápido e efêmero. Nada dura e permanece. Tudo que é sólido se desmancha no ar, se esvai na velocidade e fugacidade de bits e bytes, a verdade se transmuda, se traveste, se vulgariza.  Não que se torne uma mentira, uma falsidade, um engano, não. Mas a questão é que  não serve a nada, não significa nada, não produz nada, ou melhor, produz nada.
A partir daqui vem o desencanto, leitor, porque suponho estar para alem da metade partindo para o encerramento do texto. Sempre achei que ao divulgar o endereço do dasletra era uma forma de escolher a quem gostaria de deixar algo para que fizesse uso e não há nenhuma astúcia já que aquilo que serve como veneno também pode se converter em vitamina.
A verdade está aí.
Até breve.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

POLIR

Ontem ouvi no rádio um repórter dizer que, em um mundo de individualidades, nada mais individual do que um blog. Ontem, também, alguém reclamou comigo que eu tenho postado menos e com muita irregularidade. Comentei que estou fazendo uma reforma em nosso apartamento e, como outras, é um caos.
Ele, então, sugeriu que eu escrevesse sobre a obra: o que eu imaginava fazer e que não fiz ou fiz diferente, ou que eu não sonhava fazer e acabei tendo que fazer já que “uma coisa puxa a outra”, senão isso não vai combinar com aquilo e para fazer isto eu tenho que demolir essa ou aquela parede, ou mudar essas tomadas daqui para ali, trocar este lustre por arandelas, tirar as arandelas e colocar spots no teto, quem sabe um abajur de pé.
Eu acabei os arremates em gesso, mas tem que colocar uma placa ali, aquela parede não ficou na cor que eu vi no catálogo de tintas, vou comprar outra. Aproveita e traz parafusos para fixar os painéis. Ah, traz também bucha 6, 7 e 8... Fita isolante...
Não acho que ficou legal a nossa mesa de centro, não combina com as cadeiras que eu já ia mesmo trocar, então melhor tirar logo o móvel de TV, porque aí eu levo tudo pro sítio e, depois, quando eu for mexer lá eu vejo o que faço.
Minha filha me disse que o meu cabelo estava mais grisalho e eu bati as mãos sobre a cabeça e espantei o pó. Estão laqueando as portas internas e estávamos na fase de lixas: cem, cento e dez, cento e vinte e cento e trinta. Depois vem o fundo da madeira, lixa, massa, fundo de novo, massa nos buraquinhos, lixa, massa, lixa e afinal tinta, massa, lixa, tinta e última demão.  Além do pó o barulho do compressor, que só perde para a máquina de polir piso.
Rasparam o piso de mármore da sala de estar, cinco dias de poeira, melado de pó de pedra com água, e um barulho da máquina de pedir para vizinho vir reclamar dizendo que vai chamar o síndico e pedir providências que se enquadrem dentro do estatuto do prédio.
Combinei que eles iriam começar as oito e eles chegaram às 10:30 trazendo a máquina de polir e dois enquadrados de peças e acessórios. Saíram logo em seguida dizendo que iriam tomar um café. Voltaram às 11:15 e foram trocar de roupa. Um ritual para colocar as botas. Enrolaram um plástico nos pés e calçaram as botas. 11:35, não convém começar porque, em vinte e cinco minutos, é hora do almoço, não vale a pena. Só mesmo às 13:30 é que começaram os motivos para os vizinhos reclamarem.
Dois rapazes, um que polia e outro que puxava a água com um rodo, colocava dentro de uma pá e de lá para um balde. No quinto dia vieram seis pessoas durante a manhã e uma sétima à tarde. O encarregado veio acelerar a turma porque era o dia aprazado para a entrega do serviço e no final rolaria o checoso. Nos quatro dias de serviço, dois chegaram às 09:00/09:30, almoço de 12:00 às 13:00 e saída às quatro. Comentei com o encarregado para quem eu passei o cheque de pagamento que a turma era muito devagar. Ele disse: “Patrão, tá mais fácil achar ouro 21 do que mão de obra.” Acho que eu já tinha ouvido essa história em algum outro lugar.
Bacana é o dia em que vem a zeladora do apartamento. Neusa fica igual barata-tonta. Num tem figura de linguagem mais expressiva para a situação. A mulher fica sem lugar, com seus paninhos de tirar poeiras.
Nada mais particular, incomum, individual do que uma reforma, especialmente com você dentro do imóvel. Só a amolação é que é universal.
Segunda-feira vêem colocar os armários da suíte. Prometeram chegar às oito.
Passado o caos prometo textos mais interessantes.
Até breve.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

KAIPAY

Óbvio: toda viagem é um deslocamento. Partimos de Lima ao nível do mar e atingimos 4000m de altitude na Ilha de Taquile em Puno. Este deslocamento impõe conseqüências físicas importantes: há impacto sobre o sistema respiratório, alguma dor de cabeça e perdas ocasionais de memória o que, para mim, já é algo incorporado. Por outro lado, desde o início da viagem há uma impregnação do esquisito (no sentido espanhol), do diverso, do local, do distinto.
Nosso oitavo e último dia no Peru foi em Cuzco. Hospedamo-nos no Hotel Monastério adquirido em 1999 pela Orient Express. Construído em 1595 sobre o Palácio do Inca Aman Qhala e fundado em 1598 como o Seminário de San Antônio Abad com o fim de formar sacerdotes católicos. Em 1692 tornou-se a Real Universidad Catolica, voltando a ser Seminário em 1816. Em 1965 foi restaurado por força de um terremoto ocorrido em 1950. Na década de 70 foi remodelado para converter-se em hotel. Uma maravilha!
Cuzco em quecho (idioma Inca) é COOSCO que significa centro do mundo. A cidade é localizada no centro das quatro regiões em que se dividia o Império Inca, a 3350m de altitude e declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 1984.
Visitamos QORIKANCHA, templo maior do Império, reverência ao Deus Sol. Foi construído pelos Incas em 1423 com pedras buscadas, no braço, a 7 km de distância. Quando os espanhóis chegaram a Cuzco em 1532 e viram o conjunto de obras, entre elas Qorikancha, repletas de ouro, consideraram-nas como sendo obras do diabo, já que para eles os incas seriam animais desprovidos de conhecimento e sentimento. Pobres colonizadores.
Os espanhóis construíram sobre Qorikancha a partir de 1532 o Convento de Santo Domingo, revestindo de argila todas as paredes de blocos de pedras do Templo do Sol, construído pelos incas. Em 1950 ocorreu o terremoto e todo o segundo andar do convento, construído pelos espanhóis veio a baixo. Quando faziam a restauração reencontraram sobre os escombros as paredes de bloco de pedras construídas pelos incas. Intactas. Não ocorreu nenhum dano a elas que eram desconhecidas até 1950. É uma obra de engenharia sui generis. As pedras de encaixe, em vários modelos, foram colocadas em forma trapezoidal. Se você fica de pé com os dois pés juntos sua resistência é menor à queda, mas se você os coloca distantes um do outro, formando um trapézio, sua resistência à queda aumenta. Simples, não? Os espanhóis não sabiam.
Fomos a SAQSAYHUAMÁN. Um imenso parque arqueológico. Os Incas plantaram ali o monumento ao Deus Raio, e reverenciaram as lhamas e os pumas, animais símbolos da cultura, assim como o condor. A construção com perto de 700 metros de extensão em forma de zig zag (lembrando a descarga elétrica produzida por um raio) de dois platôs de quatro metros de altura construído com blocos imensos de pedra trazidos de jazida a 14 km de distância pensando até 120 toneladas, cada bloco. INACREDITÁVEL! O encaixe dos blocos foram milimetricamente estudados e as pedras polidas. Há duas composições na parede inferior: uma pata do puma e outra o corpo da lhama, dentro da composição de blocos cuidadosamente colocados uns sobre os outros.
Visitamos nas proximidades de Cuzco outros tantos lugares sobre os quais nada relatarei aqui, assim como inúmeras estórias contadas pelos guias ou nativos com os quais conversamos. No final de cinco horas de caminhadas fomos conhecer a Catedral de Cuzco. No geral ela não difere de outras tantas, mas há um particular: o sincretismo religioso, isto é, a convivência entre as duas culturas, Inca e espanhola. Os espanhóis tiveram que ceder muito aos operários e artistas nativos. A pregação católica colocou para os Incas que somos feitos à imagem e semelhança de Deus. Os quadros pintados e fixados nas paredes têm cavalos com corpos de lhamas e um Cristo de baixa estatura com as pernas cambotas e arqueadas, como os Incas. No suporte dos braços dos tronos do coral central, os “índios” artistas escandalizaram os espanhóis com as esculturas de mulheres com os seios desnudos e o ventre proeminente (deusa Terra). O Senhor dos Tremores colocado no altar tem hoje a coloração escura, quase negra, resultado das exposições externas em procissões onde o povo lança uma determinada flor cujo sumo altera a coloração da madeira, tornando-a numa coloração que se assemelha a dos nativos.
A provocação maior está no quadro que retrata a Santa Ceia. Uma tela de quase dezesseis metros quadrados. À mesa não está um cordeiro, mas sim um CUY (porquinho da índia, que era um animal comum no prato dos Incas). “Quem foi Judas?”, perguntou o artista ao espanhol responsável pela obra da Catedral. “Judas, foi o traidor de Cristo por dinheiro.” A representação de Judas lembra a todos os nativos o rosto de Pizarro, colonizador espanhol. Sobre a mesa, ainda, da Santa Ceia, duas garrafas de Chicha, suco de milho roxo, sem álcool, bebida típica cuzquenha. As imagens esculpidas das virgens são todas com a barriga enorme: grávidas.
A cultura Inca nasceu em 1200 d.C. e ao longo de mais de duzentos anos foi gestada a partir da síntese de várias culturas anteriores inclusive aquelas até 1000 a.C. Do início em 1200 até 1532, quando da queda do império, foram 14 Incas, o mais importante deles: PACHACUTIK. Todas as conquistas de Pachacutik foram pela via de intensa negociação com os povos, buscando o que havia de melhor na cultura tomada.
Ao voltar para o Brasil o que eu trouxe na bagagem além de singelos regalos para os mais próximos? Algumas palavras que servem a uma síntese dessa experiência dos últimos oito dias. Meu caminhar pelo diverso não tem a busca apenas no estético, mas e, sobretudo a que ele me remete. Uma primeira palavra: agradecimento.
Agradeço a Ela por ter sido, como sempre, a indutora da experiência. Foi dela o desejo de estar em Machu Picchu. Agradeço a agência de turismo, que nos proporcionou privilégios acima de nossas expectativas. Agradeço aos guias, Valéria, Rivelino, Armando, Conie e Wilma pelo carinho e o interesse demonstrado em nos inundar do que é mais relevante sobre sua cultura e sua terra. Agradeço aos motoristas das vans Antônio, Toshio e Walter, pela segurança proporcionada nos traslados terrestres. Agradeço, em especial, à Vida, por ter me proporcionado mais essa experiência.
Uma segunda palavra: RESISTÊNCIA. Os Incas nos deixaram um precioso legado. Sobre altitude, terremotos e outros desastres ambientais, fortes chuvas, intenso inverno, sol escaldante, configurações geológicas íngremes, vales de alto risco de desprendimento de rochas, falta de animais para transporte de cargas, e um sem número de outros obstáculos, ainda assim, em que pese todas essas restrições eles edificaram um patrimônio à humanidade deixando um tributo histórico de inestimável valor.
Foram colonizados, mas não perderam sua dignidade. Ouvi de um nativo: “Não tínhamos pólvora e nem cavalos, nos submetemos, mas eles não tiraram de nós as nossas tradições.” Esse parece ser o lema da essência da cultura Inca que é expressa numa palavra: KAIPAY, que em quecho significa RESISTÊNCIA.
Ontem, domingo, quando Conie junto com Walter nos levava ao aeroporto para regressar ao Brasil, passamos por uma praça no centro da qual está uma grande estátua.
- Pachacutik? Perguntei.
Conie respondeu que sim e pediu que eu observasse o dedo dele em riste apontado na direção de outra estátua (Cristo) que fica no topo de uma montanha à frente da praça. Os nativos dizem que Pachacutik aponta para o Cristo e o interpela:
- Você destruiu o meu povo, dilapidou nossa Cultura!
Ao que Cristo, com seus braços abertos, conciliador responde:
- Mas eu só vim de visita...

Incas em quecho é ENKAS. Significa: sábios.

Até breve.

sábado, 1 de outubro de 2011

CONDOR

WIRA (visão, energia) COCHA (imensidão) o oitavo rei Inca um belo dia disse que as estrelas pelas quais ele orientava-se não estavam no céu e que era o sinal de que a civilização iria se acabar. PACHA (terra) CUTIK (remover), seu neto, foi governador Inca de 1438 a 1471. PACHACUTIK tratou de realizar a obra para aguardar o final dos tempos profetizado pelo seu avô WIRACOCHA.
Para nós, viemos do pó (terra) e ao pó retornaremos. Para os povos andinos não: viemos das estrelas e a elas retornaremos.

Pachacutik planejou e começou a construir MACHU PICCHU  em 1450. Ela foi projetada com o formato de um condor para ser o veículo de seu povo para chegar às estrelas. Na época o nome era WILCA (sagrado) BAMBA (lugar). Wilcabamba, lugar sagrado.

Todo o complexo Machu Picchu ocupa 32.592 hectares e contempla 160 sítios arqueológicos. O local escolhido para a cidadela deveu-se a fatores diversos: mais próxima do ceu (para o condor alçar vôo) e também por força dos abalos sísmicos na região dos vales para onde, até hoje, deslizam imensos blocos de rocha que, por força de terremotos partiam-se e rolavam montanhas abaixo. Machu Picchu foi privilegiada por estes fenômenos geológicos já que as pedras foram alojar-se onde se projetou construir a cidadela.

Além de templos, observatórios e outros edificios foram construídas 163 casas para cerca de 500 pessoas que viveram em Machu Picchu. 749 metros de canais levam água da montanha para a cidadela a 125 litros por minuto,na época de chuvas, e 25 litros por minuto na época da seca.

As terrazas ou bancadas construídas ao longo da subida das montanhas serviam à agricultura e foram construídas pedra sobre pedra sem a utilização de argila no assentamento das mesmas para facilitar a drenagem das águas pluviais (constantes e intensas) e aeração da terra.

Em 1540, noventa anos depois do início da sua construção, Machu Picchu foi abandonada por todos os seus moradores por motivo de segurança. Os espanhóis haviam chegado muito perto do Vale Sagrado e toda a população da cidade evadiu-se para outros lugares. Os espanhóis, no entanto, nunca conseguiram encontrar a cidade sagrada dos Incas.

Em 1911, há exatos 100 anos, Hiran Bingham, um professor norteamericano de antropologia a redescobriu coberta por densa vegetação e a expos ao mundo. Bingham, um jovem de 35 anos, levou todo o acervo de peças, cerâmicas, tecidos, metais inclusive ouro para os Estados Unidos com a promessa ao governo peruano de que retornaria com tudo oito meses depois. Até hoje isto não ocorreu.

Seguramente deve haver alguma inexatidão nessas esparsas informações. Elas foram coletadas ao longo de nossa visita hoje a Machu Picchu trazidas pela nossa simpática guia, Wilma, que a cada conclusão de etapa do passeio exclamava: “ Muito interessante! Muito interessante!

E é essa a parte importante do filme. A quem interessa Machu Picchu? Para quê? No post UROS comentei sobre a minha surpresa ao avistar do avião a região andina  considerando-a inóspita e selvagem e que seria impossível ao homem explorá-la.

À mim, Machu Picchu serviu para renovar a esperança na história do homem. Pela sua extraordinária visão e inabalável energia, ainda que motivada por razões discutíveis, sobretudo para os céticos, o homem projetou sua redenção, avançou sobre a natureza desafiando-a e, no caso dos Incas, extraindo dela com respeito e reverência, todos os meios para a sua subsistência.

Estar aquí hoje, confirma a esperança de que vale, historicamente, a pena resistir e lutar pela manutenção de suas crenças e de seus valores. Mesmo que você tenha que construir ilhas flutuantes de tutora, evadir-se para outras montanhas repleta de novos obstáculos, mesmo que lhe arranquem suas posses mais expressivas e fazê-las de trofeu, ainda assim vale a pena resistir.

Estive em templos sagrados em Taipei e Thaithong em Taiwan; diante da Sagrada Família de Gaudi em Barcelona; vi a cidade arrasada de Pompéia, emocionei-me diante da Acrópole em Atenas, nas ruelas de Alhambra e Toledo na Espanha. Estive diante do Muro da Vergonha e visitei o monumento dedicado aos judeus vítimas do holoucasto em Berlim e, em Dresden, a igreja reconstruída após cessarem os bombardeios na Alemanha. Atravessei os lagos Andinos, vi a agonia do povo cubano no ocaso de um propósito, visitei a vila feudal de Monserrat em Portugal, o Coliseu e as diversas cidades em Roma. Deliciei-me com a irônica crítica de Miguelângelo na sua Capela Sistina.

Fui privilegiado por tantas outras exposições, no entanto, o todo dessa visita ao Peru diz respeito às minhas entranhas de cidadão do universo latinoamericano, historicamente violentado, vilipendiado, humilhado pelos conquistadores ainda hoje com seus macabros, sedutores e perversos simulacros. Já era e continuará sendo minha regra de conduta no âmbito da microfísica do meu poder, no cotidiano, na família, no trabalho, na vida. Quero fazer parte daqueles que resistem.

Estávamos encerrando nossa visita e eu disse à Wilma (nossa guia peruana, que fala o idioma Inca, o quecho) que em Minas Gerais minha terra temos algo que nos caracteriza e é uma das essências de nossa cultura: o queijo. Ela entendeu.

-          “ Quecho e queijo, não é… Muito interessante! Muito interessante!”

Após duas horas de viagem por via terrestre, chegamos em Cuzco no início da noite.

E EL CONDOR PASA…


Até breve.