segunda-feira, 30 de março de 2020

IRREPARÁVEL






Foi logo depois de desembrulhar os ocultos amigos. Dispersávamos uns para aqui outros para ali, até que nós, os homens, ficamos na varanda. M sentou-se e do nada se lembrou de sua lua de mel.

Há 58 anos ocorreram as núpcias. Ela abastada, filha de pai comerciante imigrante cheio da gaita e ele reles vendedor do Grande Camiseiro, lá da Rua Rio de Janeiro. João, que ainda não era Batista, quis que a Lua fosse passada na roça.

Uma dessas casinhas lá no fundo do nada, colocada em lugar próximo do que hoje é Nova Serrana ou Pitangui. Purali. João foi quem propôs, para economizar dos trocados para pagar os móveis do barraco da Rua Amianto.

Viagem de trem, trec... trec... trec..., depois à cavalo e chegaram. No fundão dos cantos. M olhava tudo com espanto. A casinha tinha cômodos separados por ¾ de parede, de tal sorte que os incômodos e os remeixos de colchão de palha, dada a época e as fomes, debruçavam por todos os cantos do aconchego.

E foi assim durante quinze dias.

Luz a lamparina com o querosene escurecendo ares e cheirando ocre. Mas tudo valia a pena, eram os amores que mudavam os cursos, não os teres. As promessas e, claro, os inhec, inhecs.

Rola (pronuncia-se rôla) do Kim, casada com o tio de João, foi quem os hospedou. À noite os trancava, por fora, no quarto e ia dormir. Rola foi, como todos dos matos, se entregue ao casal, fazendo de um tudo para agradá-los. Matou porco, galinha, sobremesa de melado de rapadura.

Não deu outra. Estômago e intestino acostumados aos paladares de mamãe, a mocinha de M, desandou-se toda de um piriri noturno sem precedentes.

-“Vocês já tiveram, num já? Daqueles que solta um barulho tatatata...”

Na madruga de um dos quinze, trancados a coisa desapertou.

- “João, me deu uma dor de barriga...” Disse ela cheia de vergonhas. Ele pegou o pinico, urinol debaixo da cama e M aliviou-se ali mesmo.

E foi assim durante a maioria dos dias.

Porco, laranja, mexerica, melado de rapadura e, de noite, tatatata... De manhã João saia do quarto, passava pela lateral e pegava o pinico tatarento das mãos de M, ela com o rosto virado para não ter contato com o tatatata. Ele sumia com o pinico lá pelos matos e voltava com o vasilhame lavadinho no rio que desaguava pouco abaixo da casinha.

Numa das noites ela correu pro quarto, ameaçava-lhe o tatatata. Os homens conversavam na salinha e tomavam pinga. No quarto, M pegou o pinico e alternou largares na medida em que os homens tagarelavam. Quando eles silenciavam ela travava, vindo o alarido da conversa largava tatatata. Até que não foi possível o controle. Tatatata quando houve silêncio e de lá da sala soaram gagalhadas.

Vergonhas.

E foi assim.

M tem hoje setenta e cinco anos. Contou-os outros viveres, vários. Ficou em cena trazendo seus horrores e que em nós produziram gargalhas de doer o estômago. Fui dormir com um gosto de melado na boca.

Foi uma noite de Luz.



Até breve.

Postei em 29 de dezembro de 2013. Hoje os jornais publicaram que parte de nossa alegria nos deixou irremediavelmente.





sábado, 28 de março de 2020

IMAGENS




Notícia me chega de Espanha. Policiais invadiram asilos e encontraram inúmeros cadáveres de idosos abandonados.
Estivesse vivo, Picasso reproduziria outra Guernica.
Um horror de uma guerra perdida.

sexta-feira, 27 de março de 2020

DESCAPITALMIA



A Pandemia já deu uma contribuição aos governos em escala global: os excluídos são realidade e não apenas figurações estatísticas.

E mais, estas pessoas (outra descoberta) serão o fiel da balança para determinar o clima em que se dará a transição do martírio da pandemia.

Dólares, Euros, Libras, Pesos e Medidas às toneladas de expressiva monta inundarão a “economia” para inibir montanhas de cadáveres produzidos não pela doença, mas pela fome ou disputas sociais derivadas do desespero.

Os estados nacionais e os grandes conglomerados do capitalismo em teste podem e devem se perguntar: por que não fizemos isto na conta de investimentos e agora vamos ter que amargar na conta de prejuízos?

Com uma diferença acachapante: as perdas não são de moedas, mas de vidas. 

Humanas.

quarta-feira, 25 de março de 2020

BOTÃO





Estou dando um tempo para que o tempo retempere outro tempo. Tempestivamente, urgentemente. Assim mesmo, reiteradamente.

Mais do que quarenta dias, para uma reflexão que forje outros quereres, outros pensares, outros sentires.

Ontem passei a manhã em reuniões via Skype com clientes. Estou em Santa Luzia, em minha morada rural onde o tempo difere muito de BH, lugar em que vivo a maior parte de minhas horas.

Próximo da hora do almoço resolvi me vacinar contra a influenza. Cheguei ao Posto de Saúde às 12:02h e a atendente me disse que a vacinação seria interrompida para que a enfermeira fizesse o seu horário de almoço, iniciado às 12:00h. Que eu voltasse às 13:30h.

Fui a minha casa e almocei. Às 13:20h estava de volta ao PS. Na minha frente doze pessoas aguardavam o pico. O tempo médio de aplicação foi calculado em 4 minutos. As 13:44h, tendo vacinado seis pessoas que estavam a minha frente na fila, a enfermeira saiu da sala de atendimento e comunicou a mim e aos demais que aguardavam na fila  (6 a minha frente e 15 pessoas atrás), que a vacina tinha acabado e que a gerente iria buscar mais.

Durante os cinquenta minutos que se seguiram até o retorno da profissional com vidrinhos contendo a porção imunológica e miraculógica, houve um frisson geral entre os velhinhos.

- Este é o Brasil!

- Um absurdo!

- É assim que somos tratados!

Alguns muito alterados com seus dedos em riste. Incitavam outros que chegavam ao PS adensando a aglomeração. Na recepção um cartaz convidava para a temperança: “Desacatar servidor público no exercício de suas funções é crime”.

Saí de lá, vacinado também contra raiva, por volta das 15:00h correndo para casa. Estava agendado para outra reunião exatamente neste horário.

Às 17 e pouco fui para o jardim de minha casa e me deparei com um botão que apontava majestoso para cima. Coloquei meu olhar fixo sobre a maravilha e freneticamente desejei que ele se tornasse rosa no tempo que eu suportasse acompanhar o processo.

A gente sabe que não é assim o tempo.

Hoje pela manhã, por volta das seis horas, voltei ao botão. Ele ainda não se fez flor, está lá gozando o seu tempo de preparo, ensaia o perfume e a beleza que deixará para o tempo enquanto durar.


Até breve.

DIÁRIO




O que faremos todos enquanto estivermos encapsulados em nossas residências entrincheirados para não ocorrer contagio?

DR, sim discutiremos nossas relações considerando, ainda que hipotético, o fim dos tempos. Quem sabe ainda temos chances?

Consertaremos aparelhos domésticos, cortinas, portas emperradas, maçanetas, armários embutidos.

Aproveitaremos para acertarmos com o Fisco.

Escutaremos música, faremos sexo com preliminares mais longas. Afinal...

Assistiremos séries inteiras, filmes de longa e curta duração.

Estaremos em janelas, pela manhã, controlando o número de automóveis que transitem. Faremos estatísticas diárias, por marca, cor, modelo e velocidade aproximada.

Lavaremos as mãos, especialmente as costas delas, entre os dedos, debaixo das unhas, pulsos. Passaremos Álcool Gel 70% (não pode ser nem 69 e nem 71) e levaremos o cheirinho ao rosto. Tornará-nos mais imunes.

Beberemos um pouco. Vinho, cerveja, caninha, scoth. Sucos de polpa. Comeremos lentilha.

Tomaremos nossos remédios, espalharemos cebolas cortadas pelo ambiente e aumentaremos a dose de arnica.

Alguns de nós com alguma habilidade nos inspiraremos em Camus e Saramago e escreveremos um ensaio: A peste da cegueira.

A propósito: execraremos o principal mandatário do País e sua prole brancaleônica. Ou não, transmitoaremos-lo. Que horror!

Postaremos nas redes sociais: flores reluzentes, mantras, imagens sacras, entardeceres e diremos que amamos como nunca a todos, todas e tudo.

Postergaremos contas e contos, atrasando tudo para qual não ocorrer sanção.

Ficaremos de barriga prá cima, como lagartixas exaustas de paredes ou como besouros suicidas.

Ficaremos calados e pensando como sairemos dessa.


Até breve.

sábado, 14 de março de 2020

DECISÃO





A quem interessar possa:

Comunico a todos que acessam este blog que acabo de tomar duas decisões, para mim, de alto impacto e relevância.

Comunico-as para que não fiquem dúvidas naqueles que estão arrolados aqui como cúmplices destas decisões e nem para nenhum dos meus leitores.

A primeira decisão, para a qual intimo à cumplicidade dos envolvidos, é a de que decidi realizar meu sonho mais inconsequente acalentado ao longo de todos os meus anos: publicar um livro.

POSTS À PROVA, título da coisa (pelo amor de Deus, enxerguem os múltiplos sentidos), será publicado no dia 08 de maio de 2022, quando este blog completará 11 anos de sua primeira postagem e eu, em fevereiro, setenta anos de idade.

O conteúdo, a princípio, será extraído dos 1145 post editados até aqui e outros textos que deverão ser incluídos publicados ou não em canal contemplado na segunda decisão.

Para tanto, estou suspendendo o acesso ao público em geral, de todo o acervo existente no blog, revestindo o livro de certo ineditismo.

Estão intimidados, ou melhor COVIDados, para prefaciarem a obra os seguintes privilegiados: Camila Pereira, Clarice Andrade, Lidia Tata, Lizete Araújo, Maria Teresa Volpini, Rijane Mont’Alverne, Júlio Caldas, Júlio Miranda, Leandro Pereira, Sérgio Frade e Wilson Baptista Júnior que deverão uma vez tendo lido este covid retornarem a mim (por telefone ou pessoalmente) para demais esclarecimentos e assunção do compromisso tácito de não me permitir a desistência da façanha.

Caso não me retornem até a data do fechamento do livro na gráfica, ou porque não leram este post ou porque abdicam de contribuir no prefácio ou por causa de constrangimentos de qualquer natureza, sigo sozinho ou convido a outros dizendo que era a eles que de fato eu queria convidar.

Espero contar também com textos de Vera, Vladimir, Valesca, Bernardo, Fabiana, Alessandra, Cláudio que deverão engrossar nas tintas elevando ao máximo minhas características mais extraordinárias. Mintam de conforça.

Jamais publicarei sem escritos de Liz Lopes, Valentin Lopes, Antônio Agulhô e Helena Lopes, essa última que à altura da edição já estará fazendo os seus primeiros garranchozinhos. Dos meus netos não me adianta esperar nenhuma mentira.

A segunda decisão é de que retornarei ao Facebook com a intenção de manter presente e público o meu olhar sobre o que se passa e estender a base de meus incautos leitores.

Devo adotar uma compostura mais adequada do que das outras vezes que usei o canal, em todos os sentidos, sem perder o meu dizer e o meu estilo.

Agradeço eternamente aos quase 170 mil acessos ao blog, mesmo sabendo que 90% ou mais deles foram por equívoco de um clic ou de sites de oportunidade.

Aguardem 08 de maio de 2022. Ou não.

Ainda assim...

Até lá.


NOTA: Reverberações das decisões tomadas e aqui comunicadas devem ser feitas na Seção Comentários que serão prontamente respondidas.

Caso queiram ter acesso a quaisquer dos posts já publicados podem pedir usando também a Seção de Comentários que terei o maior prazer em disponibilizá-lo.

Grato.

quinta-feira, 12 de março de 2020

EXAUSTÃO




O futuro não é mais como costumava ser.

Ousava-se perscrutar dez anos, nesse momento é imponderável o que poderá advir nos próximos dez dias ou, quem sabe até, dez horas.

Claro que estou falando no plano macro. O mundo está em pré-convulsão e não é pelas guerras em curso, mas por outros vetores dramáticos: covid-19 e petróleo.

Um ato terrorista hoje seria considerado como mais um assassinato ali naquela esquina. Não emplacaria como a primeira manchete.

A geopolítica expõe o mundo à potencialidade de um evento histórico de proporções e implicações imponderáveis.

Nossa crise não precisava desta para já ser merecedora de cuidados especiais. Ontem, em reunião com senadores e deputados sobre os efeitos na economia, o Ministro disse que dependendo do porte virulento poderemos amargar crescimento negativo do PIB entre 2,0 a 5,0%.

Acho que foi Nelson Rodrigues quem disse que o mineiro só é solidário no câncer. É passada a horas de nós de Minas estendermos este princípio para os demais estados. A crise em gestação é muito mais expressiva do que aquela, de dez minutos atrás, exigia.

Não se trata mais de empreendermos medidas de aplicação com efeitos em longo prazo e de demorado processamento político. O Estado Brasileiro precisa mobilizar um Comitê de Crise para enfrentar o que está iminente.

As variáveis da equação mudaram drasticamente nos últimos dias. Não se trata mais de fazer planos e propostas para o país crescer, mas agir agora para o país sobreviver (literalmente).

Não é uma marolinha como considerou em 2008 o mandatário de plantão e nem é uma crise inexpressiva como quer o atual.

Para fazer face à marolinha o governo de então mandraquiou créditos a-perder-de-vista e desoneração fiscal e a bomba explodiu na mão da pobre mulher pobre, além, claro, do maior saque de recursos públicos como nunca na história deste país.

O governo (?) atual tem a grande e definitiva chance de mostrar a que veio.  Se o alto escalão do governo estava dormindo só quatro horas por noite é provável que diante do que está posto ele fique totalmente sem dormir.

Há competência técnica instalada e há habilidade política para solidarizar-se neste câncer. O que talvez falte neste momento seja: um alfinete desinflador de egos.

Não são muitos os atores necessários para a articulação de um pacto realista e imprescindível para empreender ações terapêuticas provavelmente necessárias para debelar ou mitigar os danos prováveis do covid-19 e suas devastadoras consequências econômicas.

A marolinha somada à roubalheira homérica devastou a economia brasileira e levou às ruas 15 milhões de desempregados e outros milhões de desalentados. O covid-19 poderá ceifar vidas humanas, sabem-se lá quantas.

Que nossas lideranças construam uma mesa redonda sem arestas.

É hora de trocar o “T” pelo “D” em SOLI_ÁRIO.


Até breve.



sábado, 7 de março de 2020

CONTÁGIOS




Durante o carnaval fui privilegiado pela convivência plena com os netos. Os quatro, inclusive aqueles que vivem distante, lá em Lages/SC, que preferimos chamar de longes.

Lelê, a menorzinha dos quatro, contraiu um vírus. Gripou. Com febre e o corpinho ruim ela perdeu muito de sua serelepidade, mas ainda assim manteve sei jeitinho Lelê de ser.

Numa das noites, na verdade madrugada, a febre subiu e a avó achou por bem de dar um banho mais para frio. Jamais vou esquecer Lelê saindo do box do banheiro enroladinha na toalha, com a toca na cabeça e com seu sorrisinho maroto:

- “Qui frio”!!!!

Desde sempre a adversidade compôs a realidade. E como em tudo, cada um de nós reuniu, ao longo da vida, mecanismos próprios ou importados de outros para fazer face.

A Nova Era trazida pela entrada no Terceiro Milênio nos expõe, globalmente, a desafios imensos e paradoxais. O desenvolvimento da espécie para equacionar problemas e empreender soluções é magnífico e nos surpreende a cada dia, especialmente nas parafernálias tecnológicas de larga utilização, da biomassa à biotransmutação.

Não somos mais os mesmos seres da Era Passada, aquela que se esgotou no fim do último século, do segundo milênio. Somos outro bicho e em tudo.

Há muita turbulência nisso e em todos os campos: da política à administração, nas artes, nos comportamentos, nas ciências, no clima, nas crenças e valores.

Somos outro bicho e em tudo.

A esperança é que o corpo ainda reaja através de elementos ancestrais. A febre, por exemplo, santo alarme de biosintomas.

Não é possível que negligenciemos a oportunidade da febre trazida pelo corona, essa ducha contundente de risco global, assim como todas as guerras em curso, a incapacidade de reconhecer a exaustão da depredação da biodiversidade (ampla), o fosso abissal de riquezas, a fragilidade das relações, o ódio imperante em seus mais diversos matizes.

O que mais temo é que a gente se trate de mais um vírus e não aprendamos nada com o martírio que foi vivê-lo, como holocaustos, escravaturas, ditaduras, comunismos, terrorismos.

Não precisávamos mais de nenhum sinal que explicitasse quanto temos nos distanciado uns dos outros, quanto temos reduzido o contato, o convívio, a aceitação.

- “Qui frio”!!!



Até breve.