quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

MADAKAY?



Toda vez que cometo aniversário lembro-me do último filme do iluminado diretor japonês Akira Kurosawa, que quando fez o clássico MADADAYO tinha oitenta e um anos de idade.

O filme é baseado na história real do professor Uchida Hyakken, que se aposentou depois de trinta anos lecionando literatura alemã para se tornar escritor. Com grande carisma e humor peculiar, conquistou o respeito e a amizade de seus alunos na forma de comemoração: todos os anos, no dia de seu aniversário, era comemorado o "Madakai", quando os alunos perguntam "Mada kai?" (Pronto?), e ele depois de uma imensa taça de cerveja respondia "Mada dayo!" (Ainda não!) significando que seus alunos teriam que "aguentá-lo" por mais um ano.

De tabela, zapeando via web, deparei-me com uma preciosidade encontrada na biblioteca da Sociedade Sigmund Freud. Uma entrevista, provavelmente a última, do mestre concedida ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926.

Pincei dela alguns fragmentos para ilustrar-me na semana dos meus sessenta e três anos:

Talvez os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos que carregamos.

Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas – a companhia de minha mulher, meus filhos, o pôr do sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?

Estou muito mais interessado neste botão de uma futura rosa do que no que possa me acontecer depois que estiver morto.

Não, não sou pessimista. Não permito que nenhuma reflexão filosófica estrague a minha fruição das coisas simples da vida.

Pelo que me toca estou perfeitamente satisfeito em saber que o eterno aborrecimento de viver finalmente passará. Nossa vida é necessariamente uma série de compromissos, uma luta interminável entre o ego e seu ambiente. O desejo de prolongar a vida excessivamente me parece absurdo.

Estou escrevendo uma defesa da análise leiga, da psicanálise praticada por leigos. Os doutores querem tornar a análise ilegal para os não médicos. A História, essa velha plagiadora, repete-se após cada descoberta. Os doutores combatem cada nova verdade no começo. Depois procuram monopoliza-la.

Compreender tudo não é perdoar tudo. A análise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também o que podemos evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância com o mal não é de maneira alguma um corolário do conhecimento.

Aquiles seria intolerável, não fosse por seu calcanhar!




Mada dayo.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

FOFOS



Já basta de trazer à sala virtual um pinico cheio de merda (para entender me leiam em ALERTA ). Caduquice ou não, enche.

Por que, ao invés de falar do Juiz que pegou uma Porsche Cayenne do réu ex-trintabilhionário em dólar, falar da importância de Anitta ter ido ao casamento em São Paulo da atriz Fernanda Souza com o belo sambeiro Thiaguinho?

Vamos falar do look desfilante no tapete vermelho de Hollywood e não da grana recebida pela Breja Fror para completar o que já recebe, há anos, da contravenção. É só uma questão de grau do glamour do high society, dos idiotas e seus dentes à mostra rebolando por avenidas, ou dos miseráveis que assistem a tudo contido por cordas.

Quem sabe dar notícia de quem tá comendo quem no BBB, e não dessa avalanche pornográfica, promíscua, dilacerante moral da elite que com anda em nossa republiqueta?

Prá que optar por texto se há inúmeros filmetes Pânicos que escracham a nossa realidade cotidiana, toda ela, em relações, comportamentos, costumes e práticas? Há, afinal, uma porta nos fundos.

Por que não ir ao face book, reunir os “amigos” e destilar maravilhas, dizer de quem nasceu, da nossa festinha de fim de ano, de onde pulou o carnaval ou como “pulou” o carnaval em um sítio infestado de muriçocas?

Por que não falar do amor, de suas inúmeras manifestações, de lugares paradisíacos, de sonhos verdejantes, de quimeras, de poesia?

Melhor, ou não?

Prá que e de novo trazer a estatística de assassinatos no país no ano passado? O que valem mais de cinquenta e seus mil mortes violentas em relação à daquela que teria voltado e morreu de novo no Império para salvar o seu grande amor?

Traga rosas à sala, autor!!! Diriam-me.

Tudo bem, vá lá:

1.      Tim, meu netinho Valentin, faz um aninho no próximo dia 07. Ele está um barato!

2.      Noninha viaja em seus ícones Frozen, Emília, Adormecida, Aurora, Sofia e outras tantas.

3.      Antônio já ri.

Vou para o livro de caras!



Até breve.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

SINAIS



Mirem-se no exemplo.

Há fatos mais do que confirmados, exaustivamente trazidos à História, da participação americana no processo do golpe militar no Brasil em 1964. Analistas supõem que o mesmo se repete agora na Venezuela.

Eu, por mim, vou em outra direção.

Nossa grave decadência de governança, tanto no legislativo quando no executivo, sinaliza para tempos a cada dia mais preocupantes. Ouvi hoje gravação, disponibilizada pelo Estadão, (da conversa entre dois envolvidos) flagrada na Operação Lava-jato que me deu dores na espinha.

Toda vez que sinto dores nessa região é, para mim, um forte indício de encrenca séria à vista. Vastas emoções.

Senão vejamos:

1.    As estradas do sul, sudeste e centro-oeste por onde circula o transporte de carga mais importante do país estão abarrotadas de veículos parados em protesto contra o preço do combustível, do IPVA e do preço dos fretes;

2.   No Paraná entramos na terceira semana de greve nas escolas públicas e servidores de outras categorias, a cada dia, solidarizam com o movimento;

3. O Procurador Geral da República pede para que seja aberto publicamente o processo da Operação Lava-jato envolvendo políticos;

4. Quinta-feira próxima instaura-se a CPI com investigações que, provavelmente, contemplem o período de 1996 até os dias de hoje no Casino Retrobras. A Agência de Risco Moody´s rebaixou a empresa a grau especulativo.


5.  A previsão de inflação para o mês de fevereiro é a de que será a maior desde 2003;

6.   Marcada para dia 15 de março agenda de protestos por todo o país;

7.   Imprensa e web ávidas, como sempre, por manchetes sinistras.

Não podemos nos esquecer, no entanto e jamais, que existem inúmeros estudos, debates, de especialistas de todo tipo em diferentes épocas que têm contribuído por nos alertar de nossas querelas. Desde De Gaulle sabemos que não somos sérios.

Vozes em um deserto de mediocridades ou, como diz um dos debatedores no documentário SAÍDAS, em um terreno de manobras no qual os jogadores têm mesmo interesse que a coisa fique como está para que extraiam da situação melhores ganhos.

Ah, Venezuela, querida irmã continental, cada dia nos tornamos mais próximos...



Até breve.


domingo, 22 de fevereiro de 2015

SEISMAISTRÊSNOVENOVESFORANADA




Hoje se inicia a semana em que completo meu sexagésimo terceiro ano. Vida que me privilegiou, até aqui, com bens preciosos: boa saúde, uma companheira, três filhos e três netos (o último carrega em seu sobrenome o nome pelo qual eu sou mais conhecido).

Penso que não causei males profundos e nem fiz bens relevantes.

Modesta e trivial passagem.

Estive sempre mais atento à Humanidade que ao Homem. Optei por dirigir meu olhar mais para a História do que para o Tempo. Mais para as circunstâncias do que para seus efeitos. Mais para o contexto do que para o texto.

Acabei optando por uma marcha para a solidão.

Olhar na dimensão da floresta ofusca minha visão às árvores. Não convivo com ninguém que assalta meu cotidiano, tenho pavor do coloquial, do aqui e agora, questiúnculas da vida em sociedade.

Reconheço-me na presunção e na agressividade espevitada de um nariz que fita de cima, até porque não enxergo nem quem está ao meu lado. Nos raros e breves momentos de reflexão, sempre me sofro disso. É óbvio que dói.

Volto logo ao meu altismo autista. Não há arte senão no bordejamento.

E com que Arte me compenso? Seguramente não é a Literatura. Nem a Crítica. Sequer a Consultoria em Governança. Banais, hoje, mais do que outras, ainda.

Compenso-me pela arte de não ter inimigos, nem ódios, nem articulações perversas intrigantes. Compenso-me pela arte de cumprir compromissos, inclusive os mais prosaicos, como pagar as contas do sustento.

Compenso-me pela arte de sentir, no mais profundo, afeto intenso por Noninha, Tim e por Antônio, que nos seus primeiros olhares antes de completar noventa dias de vida, vislumbrou afinal, sexta-feira agora, contornos de parte de suas origens. E até sorriu, cândido.

Compenso-me sobre mata verdejante que me assola, nesse lugar que escolhi, edifiquei e que, espero, enterrarão minhas cinzas.

Compenso-me por ser simples, embora não pareça, em contentar-me com vestes liminarmente pudicas, sem afetações contemporâneas. Quando posso, passo dias com as mesmas.

Compenso-me pela arte de ser desnecessário.

E, ainda assim e exatamente por isto, ser indispensável. O que seria da Humanidade não fosse a Arte? 

Apenas o Homem, essa besta lamentável, tosca, desnecessária.




Até breve.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

TREVA



Numa manhã de uma quarta-feira, ou foi de uma terça-feira? Importa pouco, eu acho, o dia da semana exato, certo que foi no meio de uma semana qualquer de abril, ou foi de maio? Importa pouco, eu acho, o mês exato, certo que foi no primeiro semestre de 2006, ou foi de 2008? Importa pouco, eu acho, o ano exato, certo que foi em São Paulo, ou foi no Rio de Janeiro? Importa pouco, eu acho, a cidade exata, certo que foi em uma das duas, da região sudeste do Brasil. Vá lá, eu tenho dúvidas também se foi no Brasil.

Pois bem, o que importa é que aconteceu e mais ou menos da forma que vou relatar aqui, até porque quem poderia relatar precisamente o que aconteceu já não está mais entre nós para fazê-lo. Pelo menos é o que dizem.

Eu sempre tive dificuldade de guardar datas e lugares em que as coisas vão acontecendo. Muitas vezes também acabo construindo versões para os fatos o que, passado certo tempo do ocorrido acabo tendo dúvidas se de fato ocorreram como eu guardo. Às vezes fico com dúvida até se ocorreram mesmo ou foram fruto da minha fértil imaginação ou de minha mente delirante.

Você aí mantém interesse em saber ou é imperioso que o que aconteceu, aconteceu de fato e da forma que vou relatar aqui? Seguro que você não encontrará elementos para comprovar a veracidade dos fatos e eu, de minha parte, se tiver que relatar de novo é muito provável que vou fazê-lo de forma diferente. Posso até dizer que não lembro. Jamais que não aconteceu.

Teve um dia que aconteceu um fato e eu fiz algum registro em uma folha qualquer de papel, ou foi em uma cadernetinha que ganhei de uma pessoa de quem eu gosto muito? Não importa, sei que fiz registro e quando fui desenvolver a idéia para relatar o fato registrado me perdi literalmente. O que fiz: construí outro fato e mudei o registro apenas para encontrar coerência. Ah, não foi na cadernetinha não, foi em uma folha de papel mesmo. Sei porque teve um dia que eu procurei as anotações que havia produzido para construir o novo fato e me lembrei que havia rasgado a folha. Que havia registrado o fato.

As coisas comigo acabam acontecendo assim. Eu vou me perdendo no emaranhado de fatos e registros que, de repente, eu já não sei muito bem. O quê?

Há ainda outro ponto importante a abordar. Quando escuto uma música, ou melhor, a letra de uma música eu sempre acho que não é aquela letra que deveria ter sido, e sim outra para caber em outra música. Ou assisto a filmes. Nunca gosto dos inícios e nem me interesso pelos finais. Teatro não vou, porque é fluído. Livros de ficção gosto de arrancar páginas e reordená-las aleatoriamente. O texto quase sempre faz melhor sentido.

Lavo-me dos pés para a cabeça. Sempre, iniciando pelo lado esquerdo. Quando termino de me ensaboar, seco-me com toalhas felpudas e depois, bem seco, volto ao chuveiro. Prefiro vestir roupas com o corpo molhado. Aqui, onde moro, só eu desenvolvi esse costume.

Teve também uma mulher de quem eu gostei muito, ou foi pouco? Não sei mais porque o registro que anotei dela estava em uma cadernetinha que ganhei de uma pessoa que eu gosto muito, mas que se extraviou. A pessoa ou a cadernetinha?

Tá vendo? As coisas comigo acontecem assim. Eu nunca consigo. Vai aos poucos e desaparece. Se bem que guardo todas as minhas coisas em um armário só meu. Outro dia eu vi que mexeram nele porque tinha menos coisas que eu havia posto no outro dia.

Tem outra coisa também. Eu me canso muito rápido de ficar conversando com qualquer pessoa. Eu passo dias em silêncio tentando procurar assunto, mas de repente é muito mais difícil que eu acho prá achar.

Eu prefiro agora ficar quieto, se você não se importa. Eu vou lá para dentro. Disseram-me que virão me buscar na próxima quinta-feira, à tarde. Eu comigo não acredito. Minha vida não tem registro.


Nem texto.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

CINZAS



"A segurança é algo com que vocês, cruzados, só podem sonhar." Declaração de militante do EI antes de participar, recentemente, da decapitação dos 21 egípcios cristãos.

O Estado Islâmico (EI) tem se expandido para além de suas bases na Síria e no Iraque. A exemplo do que ocorreu com a Al-Qaeda, grupos afiliados ao EI tem surgido no Afeganistão, na Argélia, no Egito e na Líbia. Segundo o general Vincent R. Stewart, diretor da Defense Intelligence Agency, o EI "começa a expandir sua marca internacionalmente".

"Não queremos que nenhum membro do EI tenha a impressão de que, se mudar para algum país vizinho, estará basicamente num lugar seguro, longe do alcance dos Estados Unidos", afirmou o porta-voz de Obama, Josh Earnest.

"É um conflito real. Os membros do EI estão tentando criar um território separado da ampla coalizão islamista e os estão desafiando em seu próprio terreno", disse Frederic Wehrey, do Carnegie Endowment. "Ao mesmo tempo, outros extremistas estão se desligando, atraídos para o EI e ficando mais audaciosos."

...


Enquanto isto, Roberto Damatta em sua crônica de hoje no Estadão, a propósito de tese do brasilianista inglês Richard Moneygrand, escreveu:

“O carnaval seria um ritual - uma cena fixada para ser repetida - dinamizado pela igualdade substantiva de todos perante todos; e não pelo igualitarismo político burguês ou liberal de todos perante a lei. Trata-se de uma festa em que a ênfase no corpo mascarado, nu ou fantasiado dos participantes desnuda, num desabafo, um sistema hierarquizado, aristocrático e legalissimamente autoritário. Uma sociedade familística e alérgica a qualquer forma de equidade, precisa de um suspiro de igualdade e individualismo. O ideal carnavalesco de ter uma licença limitada para 'fazer tudo' até mesmo competir, só ganha essa força porque vocês, sendo católicos, marcam com o excesso os últimos dias do advento, o qual vai se abrir para a Quaresma e para a Semana Santa. O nascimento do Cristo, por contraste com a sua paixão e ressurreição, são dinamizados pela igualdade festiva da carne e pelas cinzas humildes da disciplina dos tempos em que os santos se cobrem de roxo. Antes, porém, de abandonar (levar no velho latim) a carne (cerne-vale); permite-se a bagunça de exagerar o seu uso. Antes do luto cinzento, o mel brilhante viscoso e ardente da carne.

Se o centro do carnaval era celebrar abertamente a malandragem e a esbornia do igualitário, relativizando o luxo dos aristocratas e o poder de impunidade dos poderosos, teria isso algum valor festivo no Brasil de hoje?

Atualmente, falou o velho brasilianista um tanto sério, ocorre um escândalo carnavalesco todos os dias. O governo, mascarado, mente carnavalescamente. Acabou-se o riso alegre dos papéis invertidos. Hoje, o guardião dos recursos públicos é o primeiro a roubá-los. O dinheiro do povo é posto aos bilhões em bancos estrangeiros. Virou uma rotina a afinidade predatória do Estado para com a sociedade. Se não há mais ordem, como - pergunto eu - viver uma festa da desordem? O carnaval tornou-se banal, medíocre, trivial e diário”.

...


Notícia também publicada hoje no Estadão: “A Justiça suíça abriu uma investigação por lavagem de dinheiro contra o banco HSBC e policiais fazem uma operação de busca e apreensão na sede da instituição em Genebra na manhã desta quarta-feira, 18. O processo foi aberto depois que uma rede de jornais revelou que o banco havia ajudado 100 mil clientes de todo o mundo a abrir contas na Suíça e fugir do controle de seus países. Mais de 8,7 mil contas tem uma relação com clientes brasileiros, entre eles ex-funcionários da Petrobrás”.

...

Ah, me lembrei de outro ponto. Hackers, há coisa de dois anos, veem “atacando” contas bancárias de megaorganizações transnacionais fazendo estragos monetários de alta monta. É o tipo de notícia apocalíptica que se alastrar é muito mais aterrorizadora do que qualquer decapitação coletiva.

Hoje, no Brasil, os bancos e o comércio abrem suas portas ao meio-dia.

Nossa vidinha volta ao normal.



Até breve.


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

PRECINZAS



A história chega ao fim pelo menos uma vez e, ocasionalmente com maior frequência na história de cada civilização. Quando surge o Estado universal de uma civilização, seu povo fica cego pela miragem da imortalidade, e convicto de que a sua é a forma definitiva da sociedade humana. Assim foi com o Império Romano, o Califado dos Abassidas, o Império Mogol e o Império Otomano. Os cidadãos de um desses Estados universais, desafiando fatos aparentemente óbvios, tendem a considera-lo não apenas como um abrigo noturno no descampado, mas como a Terra Prometida, a meta dos empreendimentos humanos.

Entretanto, as sociedades que supõem que a sua história chegou ao fim geralmente são as sociedades cuja história está prestes a entrar em declínio.

As civilizações entram em declínio quando cessa a aplicação dos excedentes a novas maneiras de fazer as coisas. Em termos modernos, dizemos que a taxa de investimento diminui. Isto acontece porque os grupos sociais que controlam os excedentes têm um interesse próprio em utilizá-los para fins não-produtivos, mas que satisfazem ao ego, os quais destinam os excedentes para o consumo mas não proporcionam métodos de produção mais eficazes. As pessoas vivem de seu capital e a civilização passa do estágio de Estado universal para o estágio de decadência.

As manifestações frequentemente apontadas de declínio abrangem:

1.      Aumento de formas de comportamento antissocial, como crime, uso de drogas e violência em geral;

2.      Decadência da família, inclusive índices mais elevados de divórcio, ilegitimidade, gravidez de adolescentes e família de pai ou mãe sozinhos;

3.      Declínio de capital social, isto é, participação em associações voluntárias e confiança entre as pessoas ligadas a essa participação;

4.      Debilitamento generalizado da “ética do trabalho” e aumento do culto à satisfação pessoal;

5.      Diminuição no empenho pelo aprendizado e pela atividade intelectual, manifestado por níveis mais baixos de realização acadêmica.

O completo fracasso do marxismo e o espetacular esfacelamento da União Soviética foram apenas os precursores do colapso do liberalismo ocidental, a principal corrente da modernidade. Longe de ser a alternativa do marxismo e a ideologia dominante no final da História, o liberalismo será a próxima pedra de dominó a cair. Numa era em que, por toda parte, os povos se definem em termos culturais, que lugar haverá para uma sociedade desprovida de um núcleo cultural e definida apenas por um credo político. Os princípios políticos são uma base volúvel para que sobre ela se construa uma comunidade duradoura.

De modo normativo, a crença universalista ocidental sustenta que as pessoas em todo o mundo deveriam abraçar os valores, as instituições e a cultura ocidentais porque elas encarnam a mais elevada, mais esclarecida, mais liberal, mais racional, mais moderna e mais civilizada forma de pensamento humano.

No mundo de conflitos étnicos e choques civilizacionais, a crença ocidental na universalidade da cultura ocidental padece de três problemas: ela é falsa, é imoral e ela é perigosa.

A pressuposição comum ocidental de que a diversidade cultural é uma curiosidade histórica que está sendo rapidamente orientada para o Ocidente e anglófona, que está moldando nossos valores básicos simplesmente não corresponde à verdade.

A crença de que os povos não-ocidentais deveriam adotar os valores, as instituições e a cultura ocidentais é imoral devido ao que seria necessário fazer para que isso pudesse acontecer. As sociedades não-ocidentais só poderiam ser uma vez mais moldadas pela cultura ocidental como resultado da expansão, do desdobramento e do impacto do poderio ocidental. O imperialismo é a consequência lógica necessária ao universalismo. Além disso, na condição de uma civilização madura, o Ocidente não mais dispõe do dinamismo econômico ou demográfico exigido para impor sua vontade a outras sociedades, e qualquer esforço nesse sentido também é contrário aos valores ocidentais de autodeterminação e democracia. À medida que as civilizações asiática e muçulmana começam cada vez mais afirmar a relevância universal de suas respectivas culturas, os ocidentais irão dar cada vez mais valor à vinculação entre universalismo e imperialismo.

O universalismo ocidental é perigoso para o mundo porque ele poderia levar a uma grande guerra intercivilizacional entre Estados-núcleos, e é perigoso para o Ocidente porque poderia levar à derrota do Ocidente. Com o colapso da União Soviética, os ocidentais veem sua civilização numa posição de predomínio sem precedente, enquanto, o mesmo tempo, as sociedades asiática, muçulmana e outras, mais fracas, estão começando a ganhar força.

Os elementos básicos da civilização estão se esvanecendo. Fala-se de uma crise global de governabilidade. A ascensão das corporações transnacionais que produzem bens econômicos está cada vez mais sendo igualada pela ascensão de máfias criminosas transnacionais, carteis de drogas e gangues terroristas que estão atacando violentamente a civilização.

Numa base mundial, a civilização parece, em muitos aspectos, estar cedendo diante da barbárie, gerando a imagem de um fenômeno sem precedente, uma Idade das Trevas mundial, que se abate sobre a Humanidade.



Até breve.


Extraído de: O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial, Huntington, Samuel P., Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 1996.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

CARNASAL



O jurista paulista Luiz Flávio Gomes em artigo (*) nos traz que: “levantamento realizado pelo Instituto Avante Brasil, com dados disponibilizados pelo InfoPen, mostra que o crescimento da população carcerária nos últimos vinte e três anos anos (1990-2013) chegou a 507% (de 90 mil presos passamos para 574.027). A população brasileira, nos anos indicados, cresceu 36%.

O número de presos condenados cresceu 336%. Já o número de presos provisórios, responsável pelo abarrotamento dos presídios brasileiros atualmente, aumentou 1.231% (no mesmo período). Ou seja, o número de presos provisórios cresceu treze vezes, enquanto o de presos condenados aumentou apenas quatro vezes.

Usa-se a prisão cautelar como pena antecipada; a prisão cautelar, no século XXI, é, em grande medida, o equivalente imoral da Inquisição nos séculos XVI-XVIII. Forma de contenção social (de controle social) de um determinado segmento da sociedade.

Quem não tem capitalismo distributivo, melhoria da qualidade de vida para todos, distribui dor e sofrimento, pancadaria e tortura, prisões e extermínios. Seja para as vítimas, seja para os detidos.

Por outro lado o Brasil é um dos poucos países do mundo que está fechando escolas para abrir presídios. Estudo realizado pelo nosso Instituto Avante Brasil verificou (a partir dos dados do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que no período compreendido entre 1994 e 2009 houve uma queda de 19,3% no número de escolas públicas do país, já que em 1994 tínhamos 200.549 escolas públicas contra 161.783 em 2009. Em contrapartida, no mesmo período, o número de presídios aumentou 253%. Em 1994 eram 511 estabelecimentos, este número mais que triplicou em 2009, com um total de 1.806 estabelecimentos prisionais”.


O Instituto Data Popular, por sua vez, publicou pesquisa realizada em 150 cidades com 3000 pessoas consultando sobre qual deveria ser a profissão mais bem remunerada no país. Adivinhe: pois é, deu professor. Nós nunca vamos aceitar que essa classe deveria se contentar com o que ganha, entendo que professorar é um apostolado de fé e, como tal, essa gente deveria considerar-se privilegiada por poder dar sua modesta contribuição ao desenvolvimento da Nação.

Invadir a Assembleia Legislativa no Paraná é um exemplo abominável para o exercício da cidadania. Privar nossos legislativos de sua profícua e ilibada atividade é repulsivo e condenável.

Afinal, professor não é nenhum ex-presidente recente do Banco do Brasil, agora Presidente da Retrobrás, que receberá aposentadoria mensal de ínfimos sessenta e poucos mil reais, amealhada exclusivamente para si próprio por força de norma interna baixada pelo executivo quando na presidência do BB. Caixas, atendentes e demais colaboradores que se lixem!

Não há o que reclamar, portanto, nossas crianças e adolescentes estão mais felizes por não ter que ir para escolas e poder ficar mais tempo na vadiagem. A sociedade afinal está mais segura na medida em que os criminosos estão na cadeia fazendo seus programas de ressocialização para que, no futuro, sejam reincorporados como cidadãos do bem.

Enquanto isto vamos ter, ainda neste semestre, a tão esperada reforma política liderada, na Câmara e no Senado (quem diria?), pelo partido da Mudança: Mudar sempre para continuar sempre do mesmo jeito que foi sempre para sempre.

E o Povo?

O Povo continua às margens plácidas do Ipiranga (sem água) alheio à Corte e certo de que não há nenhum problema que não se possa resolver em futuro próximo.

E não me encham mais o saco que eu estou em espírito de folia e vou entrar de cabeça e sem camisinha.

"Alaláôôô..."

Não sei se a ironia (veja em TERROR) seria a melhor estrutura para este post, mas é que...


Até breve.


terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

ALERTA



Acordei sobressaltado nesta madrugada. Na cena do pesadelo minha mãe repreendia-me severamente:

- “Respeite as pessoas, menino! Um dia você terá a idade dela e não gostará nada de que façam contigo o que você está fazendo com ela agora! A próxima vez que eu souber ou ver que você está zombando da Dona Zenólia eu vou colocar você de castigo de cara para a parede, você me ouviu”?

Nós morávamos vizinhos a uma numerosa família constituída por membros de várias gerações. Dona Zenólia era o mais velho integrante dessa família e a cada dia sua senilidade tornava-se mais aguda.

Em outras palavras: ela tinha ficado caduca.

Nada mais hilariante para um garoto do que os atos insanos daquela senhora. Eu estava sempre lá, todos eram muitos gentis e, embora não tivesse nenhum menino de minha idade no clã, eu gostava de ir para lá. Claro, sobretudo, para guardar minhas gargalhadas dos disparates absurdos de Dona Zenólia.

Lembro-me agora que os selemeleques da pobre mulher viravam repertório para eu compartilhar com meus amigos de rua e colegas de escola. Já bocudo, naquela época eu sempre aumentava, ou dava um tom mais exagerado às atitudes da infeliz. E ria às bandeiras desfraldadas junto com os meus amigos. Eles me pediam incessantemente para que eu os levasse qualquer dia para presenciar.

Meu medo de minha mãe era tão grande que, mesmo eu tendo pensado em cobrar ingresso para levar um par de meninos de cada vez à casa vizinha, isto eu nunca fiz.

Era só eu chegar na roda e a turma ia logo pedindo: “Conta aí, Lozinho... O quê que a maluca aprontou agora”?

Ela se maquiava toda com borrões que lhe davam um aspecto aterrorizante, colocava vestidos do lado avesso, calçava sapatos com os pés trocados ou um de cada par, dizia disparates incompreensíveis e, invariavelmente, quando alguém se aproximava dela ela virava-se para o lado e perguntava a alguém que estivesse mais próximo: “Quem é?” Muitas vezes era um filho ou uma filha ou um neto. Eu ela sempre dizia: “Quem é este menino que não sai daqui de casa”?

Inúmeras vezes ela saia de seu quarto e entrava abruptamente na sala de visitas e dizia: “Olha o que eu achei”! Nas mãos ela apresentava tudo o que encontrasse pela casa. Roupas íntimas dos familiares, panelas, vassouras e todo tipo de objetos. Do jeito que ela entrava saía da sala e de repente voltava trazendo outro achado.

Nesta madrugada acordei sobressaltado porque a cena do pesadelo que vivi dava conta de certa vez que Dona Zenólia entrou na sala de visitas com um urinol (pinico) na mão e disse com sua expressão mais ensandecida:

- “Olha a merda que eu achei”!

Será que eu estou vivendo praga de mãe? Ou será que estou ficando caduco? Vou logo avisando a todos: quem sair aí falando do que apresentei no último post ou em eventuais vindouros eu colocarei todos de cara para a parede, ouviram?

Aguardem-me. Eu só vou ali e já volto.




Até breve.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

RAPINAS



Ariano Suassuna em entrevista à Eric Nepomuceno no programa Sangue Latino do Canal Brasil perguntado se acreditava em Deus respondeu que sim. “A desgraça do mundo é a melhor prova de que Deus existe. Não pode ser só isto.”

Disse ainda que entre a resignação e a indignação opta pelo caminho do meio, a esperança. Não vivemos momentos que nos levem à resignação e muito menos à indignação, mas em tempo de nos balizarmos por uma esperança ativa.

Tenho refletido sobre os últimos acontecimentos políticos no Brasil, procurando me abster de pensar naquilo que eles estão impregnados pela repetição. Sem concluir fiquei me perguntando, nestes tempos de explicitação do real, porque não nos damos conta de quem tem verdadeiro poder no movimento democrático brasileiro.

O baluarte vivo da engenharia política nacional, o dos maribondos, está no painel desde logo saímos da redentora que, em março agora, completa 51 anos de instalação e 30 que a deixamos e entramos no sistema de Liberdade Vigiada patrocinada por um saudoso general da Abertura.

O dos maribondo de fogo era Vice. Em um golpe da sorte, tornou-se protagonista e nos deu dois cruzados no queixo e nos meteu em tantos outros caóticos voares.

Se olharmos bem para o mapa da história do período não será difícil a olho nu observarmos como o Brasil viveu a mercê da trama dos brilhantes articuladores da região de cima do país. E, por favor, nada contra a terra dos cabra da moléstia, muito antes pelo contrário.  Ariano e milhões de outros são dali.

Ao longo de todos esses anos eles foram sombra como se espelhassem naquele que efetivamente comandava no período de nossas trevas: o Golbery. E assim seguem de uma maneira que a mim faz admirá-los pela inteligência, pela argúcia, pela frieza, por tudo que sempre estudei como características de liderança.

Tenho o maior respeito por estes caras.

Vejam a sucessão, estudada milimetricamente, com zelo, com paciência, suportando pressões vindas de todos os subpoderes como o da mídia, do judiciário, do executivo e até de inúmeras ações da sociedade civil.

O de Alagoas, maribondo sem bigode e de pelos implantados, senhor do mesmo brilhantismo de articulação e dissimulação daquele que se aposenta dos holofotes, mas que fica ali, na espreita, blindando o pupilo-maior de emboscadas marotas. Sem lupa parece o bem público circulante...

Enquanto o pau come na gerentona-cheia-de-boas-intenções, no sapo-barbudo, nos executivos das embrulhadeiras pesadas e nos contadores de moeda verde, eles seguem ditando a História.

No arrombo da Lei, veremos quem sobra. Faço já uma fezinha com meus queridos fiéis dezessete leitores diários, pode dar algum mestreu para todos, menos para os mesmos. Seja que golpe for, construído pelas instituições constituídas ou até mesmo tramado nos porões da caserna (tomada pela força), um deles será Vice.

Ariano, querido, eu gostaria muito de somar contigo.



Até breve.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

QUAL O SEU NOME AMOR?



Um amigo, de quem não se lembra mais, o convidou para completar uma quebradeira.  Ou seja, ele, o amigo e duas garotas. Nada melhor, porque era sexta-feira e sábado se dorme, às vezes, até domingo para segunda, bem cedo, se aceitar o basquete. A garota que sobrou para ele era ela. Mais jovem menos sofrida e com maquiagem carregada, unhas dos pés e das mãos com esmaltes de cores estranhas, saia justíssima, blusa fina que lhe deixava os seios a mostra.

Disse que se chamava Ronaldo e ela, já no final da aventura, apresentou-se como Beatriz. Tinha um rosto bonito, dois olhos que alternava verde ou azul, dependendo da intensidade da luz, debaixo de sobrancelhas negras bem aparadas, um nariz bem feito e cabelos encaracolados, longos e espessos. 

Quando saía do motel ele propôs continuarem juntos por mais algumas horas, ele lúcido e ela, sem a maquiagem, topou. Estacionou o carro próximo a uma praça, por onde circulavam pessoas fazendo sua caminhada matinal. Ela se sentou num banco da praça, debaixo de uma árvore que lhes proporcionava extensa sombra, e ele deitou a cabeça sobre o seu colo. Ela lhe perguntou se ele havia falhado com mulheres outras vezes. À tarde, ela lhe deu um beijo no queixo enquanto ele fitava com olhos perdidos o movimento dos carros sobre um viaduto. Pouco depois, ela disse adeus, atravessou a avenida, voltando-se de quando em vez.

Acreditava que não seria possível revê-la. Na segunda, no escritório, por força de intensas demandas, não pode sequer lembrar-se do final de semana. E assim foram as semanas seguintes. Corretor de imóveis, expediente interno pela manhã e visitas a clientes à tarde. Foi numa dessas visitas que reviu Beatriz. Ele foi visitar um cliente, investidor e interessado em um dos empreendimentos que ele tinha na sua carteira. O cliente a apresentou como sua secretária. Ela o cumprimentou, pediu licença, saiu da sala. Terminada a reunião esperava estar com ela na antessala, mas não, ela já havia deixado o escritório. Desde lá, viveu com a mulher a lhe martelar o sorriso.

Numa noite, jogava boliche e bebia vodca, alguém se aproxima por trás tapa-lhe os olhos: quem sou eu?  Ninguém menos do que ela, os olhos de um imenso azul sob as negras sobrancelhas, e apresentou-se como Angélica. Estiveram por instantes no bar. Ele lhe serviu um drink e jogaram uma partida, vencida por ele. Sorriam muito, principalmente ele, saíram de mãos dadas numa ternura de adolescentes. Foi ele que disse pouco menos do que o necessário. O silêncio tinha nomeado bastante durante todo o tempo da ausência. Pela troca do nome, ele não via como rimar seus poemas de vodca, feitos no retorno das madrugadas, em maços de cigarros. Zanzaram pela cidade e, ainda que não se falassem, alguma coisa os unia o tempo todo. Vez por outra ele tentava se justificar pela magreza, pelo rosto afunilado, que ela não conhecera assim, pelo excesso de vodca a penetrar-lhe agora os olhos avermelhados e açoitados por estranha tristeza. Passava das duas horas da madrugada e ele a convidou para ir para a sua casa. Quando abria a porta ele a abraçou, deu-lhe um beijo terno na boca, e disse que se chamava Alfredo. Ela sorriu e beijou-lhe, também na boca, profissionalmente. Em silêncio deitaram-se ainda vestidos na cama. Ele a abraçou e pediu que ela se aproximasse um pouco mais. Ela ficou de pé e lentamente, com os olhos de um verde intenso, sob as negras sobrancelhas, fixos nos dele, despiu-se. Depois, lhe acariciando devagar por todo o corpo, tirou-lhe cada peça de roupa.

Somente foi o bastante para advir meses e desejos latentes. Ela era dele e tão dele que já ficava em casa, às vezes, até mesmo com os olhos postos na TV. Ele parecia mais um desses idiotas que não via a hora de fechar o batente para voltar imediatamente para casa. Valia à pena, isso é certo. Ela o recebia na porta, com abraço e beijo, feitos na primeira noite. Ele falava do dia exaustivo e tumultuado do mundo dos negócios imobiliários. Que estava cansado e farto e que belo dia largaria tudo e iria para um monte.

Uma noite, convidou Beatriz para ir a um cinema. Ela disse estar cansada e não aceitou. Ele insistiu, ela irredutível. Ele disse que então iria sozinho, ela reclama que não é certo. Não é certo por quê? Você me deixar aqui sozinha. De outra vez foi por um vestido, apertado e decotado, deixando os seios à mostra. Mulher minha não anda assim. Mas é de uma grife famosa... Ela tirou o vestido e o deu para uma amiga.

Daí ele se excede na vodca, no boliche, nos amigos. Nas horas noturnas. Em casa discutiam, ora por uma coisa, ora por outra. E os abraços e beijos da tarde eram tão raros quanto o sexo bem feito à noite. Ela lhe falava das ausências, do descaso e alguma irresponsabilidade dele, da falta de carinho para com ela. Ele reclama da falta de compreensão, da falta do botão na camisa azul de listas finas pretas, do café muito fraco...

Dias inteiros sem se falarem, noites muitas sem se tocarem. Esse amor escoando-se com uma fincada aqui dentro. As ofensas mútuas, as ameaças descabidas e o sexo voltando a não ser exclusivo entre eles. As novas mulheres e os novos homens a demandarem algum resto deles mesmos ou fontes de prazer. E eles se entregando a outros pela falta do contato à moda de um rio de sede.

Até que um dia, ela saiu de casa, altas horas da noite, com ele a dormir. Depois, passadas longas semanas a encontrou deitada na cama, parecendo exausta. Como se a ausência tivesse marcado novamente o que se não era novo era renascido, aproximou-se dela repleto e cansado de vodca, beijou-lhe do lado esquerdo do rosto. Ela acordou e olhou ternamente para ele. Ele gritou vagabunda e lhe desferiu um violento murro que a lançou fora da cama, prostrando no chão com sangue no canto da boca, e dos olhos, sob as negras sobrancelhas, emanava uma terrível cor cinzenta. Canalha, animal. Ela pegou o pequeno aparelho de som e jogou em direção a ele, depois o vidro vermelho de perfume, até que ele a agarrou e lhe deu um pontapé decisivo no ventre.

Ela passou dois dias no hospital e ele preso aguardando decisão da Justiça, foi liberado algumas semanas depois. Perdeu a mulher, o emprego, o pequeno aparelho de som e o vidro vermelho de perfume. Voltou ao boliche, reencontrou a vodca, amigos que lhe reconfortaram dizendo que mulheres são foda.

Não se falou mais em Beatriz. Nem em Angélica. Esteve com outras mulheres e em outros lugares. Mudou de emprego algumas vezes. Comprou novo aparelho de som e não via muita razão para se perfumar. Uma noite, no entanto, em casa, depois de um banho demorado, foi à cozinha e preparou um sanduíche. Pegou uma cerveja na geladeira e, na sala, sentou-se no sofá e lentamente bebeu a cerveja enquanto dava pequenas mordidas no sanduíche. Pensa na solidão que o habita. Crê que a mulher ainda lhe pertence. A tristeza fininha vem lhe tomando conta e só não chora porque não sabe.
Saiu às ruas, a procura dela. Procurou a amiga, deixando-lhe um bilhete. Procurou o ex-cliente investidor, onde ficou sabendo que ela já não trabalhava ali e não tinham o paradeiro. Quem era aquela mulher? O que era aquela mulher? Por que martelar tanto e como nunca, o coração? Com quantas mulheres já estivera, e quantas o procuram ainda... Mas por que essa mulher? Beatriz ou será Angélica?

Numa noite de muito calor, ele voltou mais cedo. Chegando em casa, foi direto para o banheiro, tomou uma ducha fria, enxugou-se e foi para o quarto envolto na toalha presa na cintura. Joga a toalha na cama e, antes de vestir um short, a ouve dizer, entrando no quarto, que já havia lhe pedido para não colocar a toalha molhada sobre a cama. Ele pergunta secamente como ela entrara, e ela responde que ainda tinha as chaves de casa. Depois se aproximou dele e disse que embora a sua vontade fora a de não vê-lo mais, por diversas vezes rondara a casa com o desejo de entrar e só não o fizera ainda por receio de como seria recebida. Ela diz que o ama, ele dá de ombros e vai novamente ao banheiro. Quando volta ao quarto encontra-a na cama, nua. O vestido e as peças íntimas sobre a pequena poltrona do lado esquerda da cama, como de costume.

Ontem e amanhã se falará de cortes, ministérios, bolsas de valores, copas do mundo e olimpíadas, grandes empreendimentos, casas de chá e miséria, guerras, terrorismo, terremotos, vulcões, desabamentos e inundações, assaltos e crimes hediondos, drogas e contravenções várias, corrupção e celebridades. Falar-se-á que o coração humano não é de músculos, mas de uma pelezinha que se arrebenta ao toque de um clarim, e a saudade é uma falta em todos os rostos. Que a felicidade é um bebedouro onde os homens escarram por não saberem a sua exata finalidade. Que há estudiosos preocupados com algo que assola a humanidade, essa pasteurização de pensamentos, que petrifica e arrasa a essência do cérebro, tornando-o um coágulo de fios nervosos, à moda de um processador eletrônico.


Mas a verdade é que, ontem mesmo, deitada sobre os seus braços, fitou-o com seus olhos agora num infinito azul, sob as negras sobrancelhas, pediu perdão e disse se chamar Jane e que, dentro de alguns meses, seria mãe.