segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

PRECINZAS



A história chega ao fim pelo menos uma vez e, ocasionalmente com maior frequência na história de cada civilização. Quando surge o Estado universal de uma civilização, seu povo fica cego pela miragem da imortalidade, e convicto de que a sua é a forma definitiva da sociedade humana. Assim foi com o Império Romano, o Califado dos Abassidas, o Império Mogol e o Império Otomano. Os cidadãos de um desses Estados universais, desafiando fatos aparentemente óbvios, tendem a considera-lo não apenas como um abrigo noturno no descampado, mas como a Terra Prometida, a meta dos empreendimentos humanos.

Entretanto, as sociedades que supõem que a sua história chegou ao fim geralmente são as sociedades cuja história está prestes a entrar em declínio.

As civilizações entram em declínio quando cessa a aplicação dos excedentes a novas maneiras de fazer as coisas. Em termos modernos, dizemos que a taxa de investimento diminui. Isto acontece porque os grupos sociais que controlam os excedentes têm um interesse próprio em utilizá-los para fins não-produtivos, mas que satisfazem ao ego, os quais destinam os excedentes para o consumo mas não proporcionam métodos de produção mais eficazes. As pessoas vivem de seu capital e a civilização passa do estágio de Estado universal para o estágio de decadência.

As manifestações frequentemente apontadas de declínio abrangem:

1.      Aumento de formas de comportamento antissocial, como crime, uso de drogas e violência em geral;

2.      Decadência da família, inclusive índices mais elevados de divórcio, ilegitimidade, gravidez de adolescentes e família de pai ou mãe sozinhos;

3.      Declínio de capital social, isto é, participação em associações voluntárias e confiança entre as pessoas ligadas a essa participação;

4.      Debilitamento generalizado da “ética do trabalho” e aumento do culto à satisfação pessoal;

5.      Diminuição no empenho pelo aprendizado e pela atividade intelectual, manifestado por níveis mais baixos de realização acadêmica.

O completo fracasso do marxismo e o espetacular esfacelamento da União Soviética foram apenas os precursores do colapso do liberalismo ocidental, a principal corrente da modernidade. Longe de ser a alternativa do marxismo e a ideologia dominante no final da História, o liberalismo será a próxima pedra de dominó a cair. Numa era em que, por toda parte, os povos se definem em termos culturais, que lugar haverá para uma sociedade desprovida de um núcleo cultural e definida apenas por um credo político. Os princípios políticos são uma base volúvel para que sobre ela se construa uma comunidade duradoura.

De modo normativo, a crença universalista ocidental sustenta que as pessoas em todo o mundo deveriam abraçar os valores, as instituições e a cultura ocidentais porque elas encarnam a mais elevada, mais esclarecida, mais liberal, mais racional, mais moderna e mais civilizada forma de pensamento humano.

No mundo de conflitos étnicos e choques civilizacionais, a crença ocidental na universalidade da cultura ocidental padece de três problemas: ela é falsa, é imoral e ela é perigosa.

A pressuposição comum ocidental de que a diversidade cultural é uma curiosidade histórica que está sendo rapidamente orientada para o Ocidente e anglófona, que está moldando nossos valores básicos simplesmente não corresponde à verdade.

A crença de que os povos não-ocidentais deveriam adotar os valores, as instituições e a cultura ocidentais é imoral devido ao que seria necessário fazer para que isso pudesse acontecer. As sociedades não-ocidentais só poderiam ser uma vez mais moldadas pela cultura ocidental como resultado da expansão, do desdobramento e do impacto do poderio ocidental. O imperialismo é a consequência lógica necessária ao universalismo. Além disso, na condição de uma civilização madura, o Ocidente não mais dispõe do dinamismo econômico ou demográfico exigido para impor sua vontade a outras sociedades, e qualquer esforço nesse sentido também é contrário aos valores ocidentais de autodeterminação e democracia. À medida que as civilizações asiática e muçulmana começam cada vez mais afirmar a relevância universal de suas respectivas culturas, os ocidentais irão dar cada vez mais valor à vinculação entre universalismo e imperialismo.

O universalismo ocidental é perigoso para o mundo porque ele poderia levar a uma grande guerra intercivilizacional entre Estados-núcleos, e é perigoso para o Ocidente porque poderia levar à derrota do Ocidente. Com o colapso da União Soviética, os ocidentais veem sua civilização numa posição de predomínio sem precedente, enquanto, o mesmo tempo, as sociedades asiática, muçulmana e outras, mais fracas, estão começando a ganhar força.

Os elementos básicos da civilização estão se esvanecendo. Fala-se de uma crise global de governabilidade. A ascensão das corporações transnacionais que produzem bens econômicos está cada vez mais sendo igualada pela ascensão de máfias criminosas transnacionais, carteis de drogas e gangues terroristas que estão atacando violentamente a civilização.

Numa base mundial, a civilização parece, em muitos aspectos, estar cedendo diante da barbárie, gerando a imagem de um fenômeno sem precedente, uma Idade das Trevas mundial, que se abate sobre a Humanidade.



Até breve.


Extraído de: O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial, Huntington, Samuel P., Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 1996.

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