sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

TREVA



Numa manhã de uma quarta-feira, ou foi de uma terça-feira? Importa pouco, eu acho, o dia da semana exato, certo que foi no meio de uma semana qualquer de abril, ou foi de maio? Importa pouco, eu acho, o mês exato, certo que foi no primeiro semestre de 2006, ou foi de 2008? Importa pouco, eu acho, o ano exato, certo que foi em São Paulo, ou foi no Rio de Janeiro? Importa pouco, eu acho, a cidade exata, certo que foi em uma das duas, da região sudeste do Brasil. Vá lá, eu tenho dúvidas também se foi no Brasil.

Pois bem, o que importa é que aconteceu e mais ou menos da forma que vou relatar aqui, até porque quem poderia relatar precisamente o que aconteceu já não está mais entre nós para fazê-lo. Pelo menos é o que dizem.

Eu sempre tive dificuldade de guardar datas e lugares em que as coisas vão acontecendo. Muitas vezes também acabo construindo versões para os fatos o que, passado certo tempo do ocorrido acabo tendo dúvidas se de fato ocorreram como eu guardo. Às vezes fico com dúvida até se ocorreram mesmo ou foram fruto da minha fértil imaginação ou de minha mente delirante.

Você aí mantém interesse em saber ou é imperioso que o que aconteceu, aconteceu de fato e da forma que vou relatar aqui? Seguro que você não encontrará elementos para comprovar a veracidade dos fatos e eu, de minha parte, se tiver que relatar de novo é muito provável que vou fazê-lo de forma diferente. Posso até dizer que não lembro. Jamais que não aconteceu.

Teve um dia que aconteceu um fato e eu fiz algum registro em uma folha qualquer de papel, ou foi em uma cadernetinha que ganhei de uma pessoa de quem eu gosto muito? Não importa, sei que fiz registro e quando fui desenvolver a idéia para relatar o fato registrado me perdi literalmente. O que fiz: construí outro fato e mudei o registro apenas para encontrar coerência. Ah, não foi na cadernetinha não, foi em uma folha de papel mesmo. Sei porque teve um dia que eu procurei as anotações que havia produzido para construir o novo fato e me lembrei que havia rasgado a folha. Que havia registrado o fato.

As coisas comigo acabam acontecendo assim. Eu vou me perdendo no emaranhado de fatos e registros que, de repente, eu já não sei muito bem. O quê?

Há ainda outro ponto importante a abordar. Quando escuto uma música, ou melhor, a letra de uma música eu sempre acho que não é aquela letra que deveria ter sido, e sim outra para caber em outra música. Ou assisto a filmes. Nunca gosto dos inícios e nem me interesso pelos finais. Teatro não vou, porque é fluído. Livros de ficção gosto de arrancar páginas e reordená-las aleatoriamente. O texto quase sempre faz melhor sentido.

Lavo-me dos pés para a cabeça. Sempre, iniciando pelo lado esquerdo. Quando termino de me ensaboar, seco-me com toalhas felpudas e depois, bem seco, volto ao chuveiro. Prefiro vestir roupas com o corpo molhado. Aqui, onde moro, só eu desenvolvi esse costume.

Teve também uma mulher de quem eu gostei muito, ou foi pouco? Não sei mais porque o registro que anotei dela estava em uma cadernetinha que ganhei de uma pessoa que eu gosto muito, mas que se extraviou. A pessoa ou a cadernetinha?

Tá vendo? As coisas comigo acontecem assim. Eu nunca consigo. Vai aos poucos e desaparece. Se bem que guardo todas as minhas coisas em um armário só meu. Outro dia eu vi que mexeram nele porque tinha menos coisas que eu havia posto no outro dia.

Tem outra coisa também. Eu me canso muito rápido de ficar conversando com qualquer pessoa. Eu passo dias em silêncio tentando procurar assunto, mas de repente é muito mais difícil que eu acho prá achar.

Eu prefiro agora ficar quieto, se você não se importa. Eu vou lá para dentro. Disseram-me que virão me buscar na próxima quinta-feira, à tarde. Eu comigo não acredito. Minha vida não tem registro.


Nem texto.

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