segunda-feira, 23 de outubro de 2017

REPLICANTE



Assistir à ELLE, filme de Paul Verhoeven, assemelha-se a um soco na boca do estômago. Uma fisgada na vertebra, uma torcida de tornozelo no último degrau da escada, a perda de alguém muito próximo...

Uma dor e profunda.

Michèle, a protagonista, vivida pela diva Isabelle Huppert, é a personificação do contemporâneo. Ao longo de toda a trama ela é exposta a diversas situações e reage a todas a partir de um traço de conduta absolutamente consistente.

Michèle é a Amoralidade.

Amoral é aquilo que está fora da moral, ou seja, é aquilo que é neutro no que se refere à Ética. Em um sentido prático, um indivíduo amoral vive sem as condições subjetivas exigidas para que os seus atos ou juízos sejam morais.

Nada que lhe sucede encontra paradigma em algum código moral. Ele é imune a parâmetros que constituem o civilizatório. No filme, o sexo, o trabalho, o amor e a família são vistos como formas de organização perversas em si. Questiona toda forma de dominação, culminando no exemplo de violência sexual.

Os personagens são tomados por seus desejos, e Verhoeven permite que saiam impunes de gestos socialmente inaceitáveis.

A dor a que fui submetido não deriva da narrativa em si, mas daquilo que a interpretação do filme a mim remeteu. O contemporâneo nos expõe a sinais cada vez mais evidentes de que nosso código moral esgarçou, perdeu consistência e nexo. Não há Moral referente, portanto.

Toda análise dos atores sociais está prejudicada sob a perspectiva de algum marco ético norteador. É tola a crítica fundada em qualquer parâmetro. Não há parâmetro.

Tudo pode.

Não há escândalo, nem crime. A aparente ordem ambulante contém em suas vísceras a perversão que nenhuma máscara encobre.

Nosso juízo sobre o Juízo, nossa expectativa quanto à Política, nossa compreensão e compromisso com o afeto, nossa concepção como sujeitos da Cultura estão em frangalhos.
Nem a Arte se salva e nem salva.

Preferia não ter assistido à ELLE e ter me poupado da dor.

A realidade sem máscaras é desesperadora.

O título do filme, o feminino, é a pá de cal.



Até breve.

domingo, 1 de outubro de 2017

FULIGEM



Recebemos ontem, para almoço, em nossa casa de Santa Luzia um grupo de familiares e amigos próximos.

Em dado momento, um dos presentes disse, apontando para a escultura da foto:

- Agulhô, você precisa tirar isto daí... É politicamente incorreto. Ou então pintá-la de branco...

Contratei seu Divino logo que adquirimos o terreno, há mais de vinte cinco anos. Ele ficou conosco durante quinze, nos quais foi responsável pela arquitetura e execução de todos os jardins, pomares e hortas impregnados por um toque de seu nome.

Pouco mais de treze anos atrás ele me pediu que eu dissesse ao encarregado pela construção de nossa casa para que contratasse seus filhos: João (pedreiro), Geraldo e “Pior” como ajudantes.

Assim aconteceu. Logo que eles chegaram para trabalhar e foram apresentados, minha esposa quis saber por que “Pior”.

- Seu nome não é esse...

- É apelido de criança... Eu não jogava bola bem...

- Qual seu nome, menino?

- Joselone.

- Pois aqui na nossa casa ninguém vai chama-lo de “Pior”.

Próximo de terminar a obra seu Divino nos disse que estava cansado e que gostaria de se aposentar e nos pediu que ficasse com Joselone em seu lugar.

Desde então, Joselone está conosco mantendo com o mesmo carinho, dedicação e empenho o que o seu pai deixou divino. Mas com ele trouxe Kátia, sua esposa pedindo que ela fosse contratada para cuidar da casa e da cozinha.

Minha esposa disse a eles que aceitava ficar com ela somente se ela voltasse a estudar pelo que receberia de nós alguma ajuda. Na ocasião fui conhecer onde eles moravam junto com duas filhas pequenas.

Era um espaço de pouco mais de quatro metros quadrados em um porão úmido e sem janelas com uma abertura que servia de entrada tapada à noite por uma folha de compensado, refugo de obra. Cozinhavam em dois blocos de cimento superpostos e as paredes do cômodo estavam impregnadas de fuligem.

Samara, sua filha mais velha ficou com sequelas nos olhos, por força das circunstâncias.

Conversamos com ambos e combinamos que eles construiriam também a sua casa. No ano que vem eles terminam de paga-la. Uma casa de 103m² com sala, banheiro social, suíte, dois quartos e cozinha. De laje, com cercas vivas. Pintada de um verde sem tamanho.

Ao longo desses anos todos, Joselone e Kátia nos ajudaram a manter nossa casa um lugar agradável por estar. Sentam-se conosco à mesa em todas as refeições, mesmo quando eventualmente somos visitados por algumas pessoas que se sentem um pouco incomodadas com a presença de ambos.

Em contrapartida pudemos recompensá-los também com algo menos relevantes como móveis, eletrodomésticos, roupas e um sem número de outros agradecimentos. No último dia 21, nasceu Lucas Antônio, filho de Verônica. Joselone e Kátia estão transtornados de alegria pela chegada do netinho e levaram de nós o berço em que dormiram todos os meus quatro netos e a poltrona em que sentaram minha filha e minha nora para amamenta-los.

Kátia fez o primeiro grau, o segundo grau, o vestibular e hoje está cursando a Faculdade de Pedagogia. Hoje ela ainda continua conosco, mas faz estágio em escolas e vem se aplicando em concursos para professora.

Joselone, de quando em vez, diz que o valor que eu descontei mensalmente sem juros do salário dele representa hoje a metade do que estão vendendo lotes nas suas redondezas e a casa vale hoje quase dez vezes o valor que foi gasto.

- E foi eu quem fiz e foi em quem pagou, né Agulhô?

Pois é, o comentário feito ontem me despertou para algo para o qual eu não estava atento. Todos os presos e ainda investigados na operação Lava Jato, nenhum deles tem a cor de seu Divino, João, Geraldo, Kátia, Samara, Verônica e também Lucas Antônio.


Penso se eu consulta-los se gostariam de ter outra pele revestindo os seus corpos eles responderiam singelamente que não. Não gostariam de viver a vergonha de serem brancos.


Até breve.