sábado, 29 de setembro de 2012

BAILAR



Recebemos ontem à noite, em nossa casa de Santa Luzia, a visita de uma grande amiga que nos brindou com passagens significativas de sua vida ímpar.

- “Minha vida dá um livro ou até um filme.”

Ela tinha quinze anos, em meados da década de sessenta, e faria seu debut para a sociedade tradicional belorizontina com cobertura da melhor imprensa local. Frisson geral nas melhores famílias da cidade.

Ela teria que ter um par para a valsa além do pai e do irmão, naturalmente. Em paralelo os pais prospectavam candidatos pertencentes à mesma ou à melhor estirpe e pedigree da família.

- Então, minha filha, quem vai dançar a valsa contigo?

- Não esquentem que eu vou arrumar...

Dez dias antes da festa do glamour ela estava no clube freqüentado pela nata social e se deparou com uma figura masculina, seleção brasileira de vôlei, olhos azuis, louraço.

- “É esse!”. Determinou-se.

Só que o alvo estava acompanhado de uma lourinha inoportuna. Ela não se fez de impedida e partiu prá cima. Ao se apresentar disse que queria que ele dançasse a valsa com ela. O alvo foi fisgado e achou o máximo poder estar com ela em um ambiente alguns (muitos) patamares acima do seu na escala social. A lourinha era irmã do belo.

- Então filha, com quem?

- Vou trazê-lo aqui em casa para vocês conhecê-lo...

- Ele é de que família? O pai é quem e o que ele faz?

- Perguntem para ele no dia que ele vier aqui.

Os pais dela levantaram o dossiê completo do pretendente e ele foi reprovado em vários dos quesitos analisados. Acontece que o jovem era bem jeitoso, diplomático e passou no teste só para a valsa.

- Entendeu, minha filha?

Dia do debut. Ela desceu as escadas do Clube da Hípica ao som da época e ocasião sob os olhares de beldades super produzidas e cavalheiros smokatos com toda pompa e circunstância. Ela estava tão mais linda do que quando conheceu o louraço, que só havia a visto de uniforme escolar, que ele passou por ela no salão e não a reconheceu.

- Ei , rapaz, sou eu aqui!

E foi assim.

A vida não reservou só a valsa. A paixão cresceu recíproca e ultrapassou em muito o debut. E a família dela não aceitou “Romeu”. Não aceitou prá valer, quem viveu a época sabe como eram as normas da TFM – Tradicional Família Mineira. Em mil novecentos e setenta e poucos a coisa era inspirada no período medieval. Por exemplo: hora para chegar em casa, dez da noite, senão era o horror.

Teve um dia que aconteceu. Ela havia ido a um aniversário de uma amiga e voltou para casa depois do limite estabelecido. Tocou a campainha várias vezes e os pais não a atenderam. Ela foi dormir na casa de uma outra amiga.

Desnecessário relatar para quem viveu na época ou mesmo para quem não a viveu imaginar o clima doméstico. No entanto, nada pode ser tão ruim que não possa piorar.

Uma noite os pais foram a um casamento e ela calculou que eles voltariam para casa bem tarde. Estava sendo inaugurada uma nova boate na cidade e ela estava louca para ir dançar com seu “Romeu”.

Seus pais saíram de casa as oito e, às dez horas da noite daquele dia, ela estava dentro do fusquinha vermelho do seu amado com destino à dança.

A coisa tava tão boa na boate que ela só voltou as três da madruga. Quando ela chegou em casa viu, de dentro do fusquinha, seu pai na porta com um revólver em punho. O pai deu quatro tiros. Um em cada pneu do carro do “filho da puta do ladrão de jovens de boa família”. Ela foi tirada do carro a força pela mãe que empunhava um cinto largo do marido. Ela entrou em casa tomando a maior surra de sua vida. Enquanto isto o pai apontava o revólver para "Romeu" para que ele não impedisse a mãe de espancá-la. Da cabeça aos pés ela ficou com as marcas da fivela do cinto e teve que ser medicada.

Seus pais a trancafiaram em um quarto e ela ficou incomunicável. Indignada a família de “Romeu” resolveu interceder e acionou um amigo militar que adentrou a casa dela para salvá-la do cativeiro. Retiraram-a do quarto e a colocaram dentro de um taxi em direção a um médico para examiná-la. Quando ela entrou no taxi o chofer, assustado com os ferimentos da jovem, perguntou:

- Ela estava no ônibus do acidente?

Havia ocorrido um acidente no Viaduto das Almas envolvendo um ônibus que resultou em várias vítimas, inclusive fatais. 

Anos e vários conflitos depois deste episódio eles ficaram noivos e marcaram casamento. A mãe não moveu uma seda e nem um cetim. O pai disse que não queria saber nada a respeito.

Ela mesma costurou o seu vestido de noiva e os das damas. Arrumou espaço em salão e para recepção contratou para que se servisse chocolate e champagne, face às restrições agudas de orçamento. “Romeu”, por sua vez, havia comprado um ninho de dois quartos na Francisco Deslandes.

- Uma gracinha! Eu adorava aquele apartamento...

Dias antes do casamento os pais viajaram e não compareceriam ao evento. Amigos e familiares sugeriram a ela que entrasse na igreja acompanhada por um de seus tios e ela disse:

- Eu vou entrar sozinha, e pronto!

Soava o primeiro acorde da marcha nupcial quando a solitária noiva deu o seu primeiro passo em direção ao altar.

- De que lado eu fico?

- Do esquerdo...

O pai, com olhar severo, entrou sem dizer mais nada e ela achou que tudo poderia ser melhor a partir dali. No entanto, encerrada a cerimônia o padre deu a última benção e ela, emocionadíssima, virou-se para o interior da igreja. Seus pais já não estavam mais lá.

O casamento durou mais de trinta anos. Ela está divorciada há doze.

A noite de ontem, regada à scoth e à narrativa de nossa amiga, ficará na memória como mais um dia  especial em Santa Luzia. Eram dez horas da noite quando nossa querida amiga olhou o relógio e:

- Nossa, já são dez horas?!!! Eu tenho que ir embora...


Até breve.
   

Um comentário:

  1. Lozinho,
    que habilidade de contar uma história. Emocionante e mais uma vez com um final inteligente e cômico.
    abraços

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