terça-feira, 17 de maio de 2011

MOTIVAÇÃO



De 4 a 12 de maio de 1925, o físico alemão Albert Einstein (1879-1955), uma das maiores personalidades do século passado idealizador da teoria da relatividade visitou o Brasil. Em uma das várias solenidades a que compareceu, um jantar oferecido pela nata da inteligência nacional, ocorreu (dizem) o seguinte diálogo entre ele e o presidente da Academia Brasileira de Letras, de quem sei o nome, mas não conto. Einstein teria perguntado ao intelectual: ‘O senhor faz o quê?’ Ao que o intelectual respondeu: ‘Escrevo. Livros e também crônicas diárias para um jornal. ’  Surpreso, o físico interpelou novamente o intelectual: ‘Como?!!! O senhor tem idéias todos os dias?!!! Que maravilha, eu tive uma única idéia em toda a minha vida!’

Nós não havíamos ainda construído nossa casa em Santa Luzia que fica no alto do terreno que é rampado. Lá ficava um pomar. Em um domingo, pela manhã eu me encontrava ali cuidando das mudas de árvores que havíamos plantado. De repente ouço chamarem pelo meu nome: Gulhôoo!!! Gulhôoo!!!   Do portão de entrada da propriedade que fica na parte abaixo do terreno vejo uma senhora, com a voz esgarçada, gritar pelo meu nome. Já chego aí, gritei. Quando me aproximei da senhora, que não conhecia, ela que se apoiava numa bengala me intimou: caça um canto aí prá eu sentá! Peguei na mão dela e a levei para dentro da área coberta onde construiríamos o que hoje é a cozinha. Logo que ela acomodou-se eu disse: - ‘A senhora sabe meu nome, eu não a conheço... ’ – Eu sou mãe do Jair (que vem a ser um artista serralheiro que fazia algumas esquadrias de ferro para nossa casa). ‘Ele me disse que você é muito engraçado, aí vim te conhecê’, disse e arrematou: ‘Eu não gosto de pessoas desgraçadas!’ Perguntei o nome dela. ‘Julieta é o meu nome de batismo, mas eu gosto de ser chamada por Júlia, porque foi assim que o meu marido com quem eu fui casada durante setenta anos me chamava... ’ Ela no seu vestido estampado, com um leve perfume, deveria ter então agora quantos anos? ‘A senhora foi casada setenta anos, dona Júlia?’, perguntei. ‘Sim, por quê? Disse levantando a cabeça. ‘Por nada... A senhora tem quantos anos?’, quis saber. Noventa e quatro, por quê?’ Senti que nascia ali uma oportunidade ímpar: conviver com uma pessoa que aos noventa e quatro anos ainda pergunta. ‘O que é viver noventa e quatro anos, dona Júlia?’, indaguei intensamente interessado no que ela iria dizer. ‘Até os noventa vinha bem, agora ficou mais divertido... ’

Dona Júlia passou a conviver conosco, praticamente todo final de semana eu a visitava ou ela, raramente, ia à nossa casa. Certa vez eu e ela estávamos na cozinha da pequena casa em que ela morava, conversando, ela me acariciava os braços e as mãos e a Vera (minha esposa) vinda da sala entrou na cozinha. Dona Júlia tirou as mãos bruscamente do meu braço e eu percebi: ela corou. Seu rosto fumegava. Vera saiu novamente e Dona Júlia foi ao encontro dela na sala. Da cozinha vi Dona Júlia abraçar Vera ternamente e ouvi-a dizer: ‘Vera não me leve a mal, mas é que eu gosto muito dele. ’

Dona Júlia nos convidou para o seu aniversário de noventa e cinco anos. Não fomos. Eu confundi o dia ou me esqueci e não fomos. Semanas depois, passada a data do aniversário, estou numa das ruelas de Santa Luzia, quando de uma pequena loja sai Dona Júlia de braços dados com uma das netas e apoiada pela sua inseparável bengala. Quando ela me viu, rodou a bengala em minha direção e gritou: ‘Gulhô!!! Só de pirraça eu vou fazer noventa e seis!!!’

Dona Júlia faria noventa e seis anos e nos convidou novamente para o seu aniversário. A família rezaria uma missa na Matriz da cidade. No dia, uma sexta-feira, desci no aeroporto de Confins exaurido, extremamente casado por uma semana intensa de trabalho e fui para Santa Luzia. A missa, no início da noite, já havia começado. Na chegada à Matriz aproximei-me da porta principal e de lá procurei Dona Júlia e Vera e não as encontrando resolvi ir por uma das portas laterais. Quando entrei na igreja por uma das portas laterais vi Dona Júlia, de pé. Ela me viu e me intimou: ‘venha aqui!’ apontando com o dedo em riste para o chão.

Vera estava sentada em um dos bancos da frente. Parei e fiquei também de pé ao lado de Dona Júlia. Dez minutos depois que eu estava ali, disse para a Vera: ‘Não é melhor a velha sentar?’ Esperando que se isso acontecesse eu poderia descansar um pouco já que eu estava em ponto de cair ali de tanto cansaço. Dona Júlia então repreendeu-me: ‘QUIETO!’ A missa já estava acabando, felizmente, pois eu ainda me encontrava de pé, quando Dona Júlia pegou na minha mão olhou bem fundo nos meus olhos e disse: ‘Corro risco de fazer noventa e sete, não corro?’

Dona Júlia fez noventa e sete anos. Fomos a casa dela no dia do aniversário. Em determinado momento, estávamos apenas eu e ela num dos pequenos quartos da casa, eu perguntei: ‘Dona Júlia, a senhora não tem medo de viver aqui com sua filha (de setenta anos), sozinha?’ Ela olhou para mim, ficou pensativa uns instantes e respondeu: ‘medo, medo eu só tenho da morte porque não a desejo. ’

Depois de Dona Júlia, ficou uma teoria, que talvez seja a idéia da minha vida. Ela vem sendo aplicada em diferentes oportunidades na minha prática consultiva e nas palestras que faço pelo país a fora. Empreender ações transformadoras não se faz sem riscos. Tenho procurado nos olhos das pessoas que participam desses eventos, os olhos de Dona Júlia, especialmente quando ela disse, certa vez, ‘SÓ DE PIRRAÇA EU VOU FAZER... ’


Até breve.

2 comentários:

  1. É incrível como o " só de pirraça " impulciona nossas vidas .
    Parabens pela descrição , a Dona Julia , tem razão , você é mesmo engraçado.

    Gilberto

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  2. É ... vale a pena a pensar numa estratégia para ver se "só de pirraça" esse povo anima a te dar um netinho, né? kkkkkk beijos Camila

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