quarta-feira, 31 de agosto de 2016

ORTORIDADE



Está na contracapa do livro de Francisco Daudt da Veiga, O Aprendiz de Liberdade(*), um de meus livros-de-cabeceira:

A liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam.” Esta citação é a bússola deste livro. Ela nos faz pensar que somos um tipo curioso de marionetes: atados por fios, mas olhando para cima com vontade de saber como é a cara daqueles que os puxam, quais são suas intenções e suas disposições de espírito. Bonecos controlados, sim, mas com algum espaço para um arbítrio que queremos mais livre.

Já no corpo do livro, no capítulo Argumento de Autoridade, Chico Daudt escreveu:

Um amigo da juventude de Billy Wilder (o diretor de Quanto mais quente melhor) foi pego se masturbando. O pai ameaçou-o: “Se você fizer isso cinquenta vezes, vai morrer”. O pobre coitado começou a raciocinar seus impulsos, mas finalmente chegou ao número-limite. Escreveu uma carta de despedida ao pai dizendo que não tinha conseguido se conter, e dirigiu-se ao abismo. Sobreviveu, é claro. E reuniu-se aos amigos para um festival de punheta anarquista em que proclamavam: “Os pais mentem!”

Lembrei-me deste delicioso livro ontem. Acompanhei, nos últimos dias, boa parte das sessões derradeiras do processo de impeachment.

É assim a nossa principal fonte de crenças, de conhecimentos e de “verdade”: o argumento de autoridade. Os livros, os jornais, a escolaridade, nossos pais, nossos amigos importantes, os políticos, enfim, o séquito de autoridades que nos rondou, apresentou verdades a que tínhamos que nos curvar segundo um princípio: é verdade porque vem da autoridade.

Precedida pelas falas intermináveis e mais do que repetitivas a grande maioria dos parlamentares usaram: “A verdade é quê...” Olhando para as câmeras como se dirigissem mesmo a nós, os despossuídos da verdade, eles intimidaram com a sugestão de que não fazemos parte de um mundo de pessoas cultas, de quem estamos sempre por baixo, e se não entendemos é porque somos burros.

Os pais mentem.

Não bastassem há ainda os “amigos feicebucanos” com suas intermináveis bandeiras desfraldadas, os mais eruditos fixando em seus perfis depoimentos, manifestos, pareceres de intelectuais, artistas, enfim daqueles que têm domínio da verdade.

Um porre!

Conta meu tio-avô Jango, em seu livro de 1936, Memórias de João Daudt Filho, que a matriarca dos Daudt emigrou da Alemanha, chegando ao Rio Grande do Sul em 1824. Já instalada, confessava-se ao padre uma vez por ano com seu português precário em apenas uma frase: “Eu non robô, eu non mato; tudo mais eu feiz”. Pode ser que o resumo fosse derivado de sua linguagem rudimentar, mas do ponto de vista do superego a confissão é perfeita: não havendo provas absolutas em contrário, somos culpados de tudo, inclusive de crimes das vidas passadas (o carma) e do pecado original, herdado de Adão e Eva, cerca de 40 mil gerações atrás!

Eu, vou dizer proceis: tudo eu feiz. E muito mais do que cinquenta veiz.

Duvidem de tudo que eu escrevo, especialmente quando apoiado em outros despossuídos.

Principalmente os títulos dos posts. Hoje, por exemplo, viram que começa com ORTO?

Até breve.


(*)O aprendiz de liberdade / Francisco Daudt da Veiga – São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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