segunda-feira, 24 de março de 2014

CEM



Fosse vivo teria completado 100 anos ontem. José Lopes Agulhô, meu pai. Inúmeras vezes trouxe aqui o figura e quase sempre me referindo a ele como um ignorante. Porque era e não era pouco.

Além de receber o nome recebi dele a mais próxima aparência, é o que dizem meus irmãos e amigos mais chegados ao meu pai. Estatura mais baixa, tórax menos robusto, o jeito de falar e o humor repetem em mim.

Devo agora explicar, se é que explico alguma coisa, porque nomeio meu pai como ignorante. Meu pai nunca leu um livro sequer, jornais lia a parte de crimes e esportes, futebol apenas. Filmes só de bang bang e de amor (como ele se referia). Toda vez que dizia a ele para que assistisse a um filme, ele indagava: “Tem luta? Tem moça?”.

Mecânico industrial de máquinas pesadas, tipo marombas, betoneiras, tornos e quetais era habilidoso, engenhoso e capaz das mais impensáveis gambiarras para fazer funcionar e bem geringonças imensas.

Nossa casa ficava, e ainda esta lá, com algumas reformas empreendidas pelo atual morador, atrás do galpão da oficina. De lá ouvíamos ao assobio solitário ou às suas canções carlosgardelnianas, chorosas e repetidas inúmeras vezes ao longo do dia de trabalho.

De lá só saia para almoçar e quando terminava o seu expediente. Foi o trajeto de vida do meu pai. Da oficina para dentro de nossa casa. De dentro de casa para a oficina. Tá bom que houve um período em que ele ia ao cinema à noite até que bangbangs e filmes de moça foram rareando e ele desinteressou-se pela telona.

Foi para as novelas, assistia as das nove, porque não gostava das da seis e achava as da sete idiotas. Ficava possesso com os dos mal e chorava em lágrimas pelo o que passavam os do bem e sempre que terminava uma novela ele dizia que não assistiria à próxima porque ela não prestava. Era, me parece, a forma dele fazer o luto pelas emoções vividas.

Depois apaixonou-se por carros e minha mãe, acho que com razão, sentia que ele gostava mais dos carros do que da família. Entre pão e virabrequim ou mesmo uma mangueira para a saída de gasolina do tanque, ele optava pelos componentes de seus belairs.

Alguém pode ter achado na época que teria sido mais ou menos por isto que eu deixei o acendedor de cigarros ligado num Sinca Chambord que ele havia acabado de trocar. Novinho, rabo de peixe quase foi às chamas gerais por força de minha traquinagem. Não tivesse eu lá pelos oito ou sete anos, os cascudos seriam mais doloridos.

Juro que não era por ostentação e qualquer razão semelhante: era algo com o qual ela se relacionava no campo emotivo, automóvel era como um ser para o diálogo, para a interação, para o prazer, o único que a ele se permitia.

E dane-se o resto, inclusive os filhos, mulher e os cambal.

O tempo passou e a fera foi amansando. A vida deixou marcas profundas pelas agruras e revertérios e ele foi abrandando seus horrores. A casa foi ficando vazia, netos, bisnetos e até tataranetos foram chegando.

Só que junto, Leny, a sua moça, deu de ir para a igreja. À paróquia acabara de receber um vigário tão charmoso como o Pepe. O velho ficou possesso como com alguns das novelas e partiu para cima com um ciúme tão espesso quanto daqueles cantados nas letras carlosgardenianas.

- “Já vai né, ficar olhando na primeira fila, para aquele padre safado. Um dia vou acabar com essa pouca vergonha. Quebro os ossos todos daquele sujeito que não vai sobrar nem um milímetro dos panos da batina, cê vai ver, Leny?”

Que nada. Ele acabou foi tendo que acompanha-la inúmeras vezes aos sábados, domingos e dias santos à igreja e eu fui testemunha que ele fechava os pulsos com vigor quando o padreco se aproximava.

Meus irmãos pediram que fosse rezada missa ontem pela passagem dos seus cem anos. Era o lugar que menos meu pai tinha interesse de ir. Agradeci a eles por terem tido a iniciativa de fazê-lo. Os velhos devem estar bem, mesmo que meu pai tenha conseguido o seu intento de deixar batinas em frangalhos.

A ignorância de meu pai era na exata medida de seu afeto.




Até breve.  

3 comentários:

  1. Tio li seu post onde escreveu sobre o aniversário de cem anos do vo^vo...Achei muito fensivo voce chama-lo de ignorante.. afinal nós que somos mais estudados e refinados tenhos a obrigação de enteder que na época em que ele foi criado as pessoas que tinham condições é que estudavam... ele não tem culpa portanto de te ser tornado um ignorante... não o chame assim em público pois é feito para o senhor que é um homem letrado fazer issso com o próprio pai!!! Acho muito feio mesmo!! Meu pai tem inumeros defeitos mas seria incapaz de dize-los em publico de forma debochada como voce fez... além do mais voce disse que ele dava mais valor ao carro do que a familia.. como pode dizer isso?? tem provas... voce estava dentro do coração dele pra saber?? voce pode estar levantando falso testemunho de algume que já morreu... se não disse isso em vida pra ele então cale-se pois falar de quem já está morto é covardia.. ele não pode se defender... é sua opinião contra de uma família inteira .... acho que voce não deve ter razão né??? em algum ponto voce se equivocou...

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    1. publiquei sem assinatura pois não tinha conta em enhuma das opções por isso publiquei anomino......... mas sou eu karla, filha do Getulio!!!

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    2. Karlinha, leia ou se já tiver lido leia novamente o post MARCA. Uma das lições mais significativas que eu tive em minha vida. Muito obrigado por ter manifesto sua opinião.

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