sábado, 18 de junho de 2011

RENASCIMENTO

Nos dois anos anteriores (1972 e 1973), inclusive no ano em que servi o exército tentei vestibular para medicina. Em 1974 capitulei e fiz Letras. Passei em um dos últimos lugares e matriculei-me na Fafich da UFMG: Português, Inglês, Grego e Latim. Adivinha se eu compareci às aulas. Errou. Frequentei algumas cadeiras dos cursos de Filosofia, de Sociologia e de Ciências Políticas e, na Faculdade de Letras as aulas de uma professora, de novo, PROFESSORA de Literatura Brasileira. A mulher arrancava dos textos uma viagem fascinante. Eu seria capaz de assistir toda aula dela sem respirar, com os olhos fixos nela, os ouvidos hiper aguçados e o coração aos saltos. Depois da aula eu a ‘alugava’, literalmente.
Em março de 1974 pedi demissão ao Eder, enfiei-me num macacão jeans, camiseta branca e sandálias de dedo com solado de pneu. Passava o dia inteiro e parte da noite no prédio da Fafich, pulando de sala em sala. Fiz minha própria grade de conteúdos, me lixava para quantos créditos em tinha que ter para isso ou para aquilo. Eu estava preso noutro propósito que não era nem passar de ano e nem passar pela escola. Meu propósito era tirar o melhor daquela experiência.
Entrei pro DA, fiz tudo o que tive direito e o que também na época não era tão direito assim. Escrevi artigos para o jornal do DA, GOL A GOL SE PEGÁ COM O PÉ É DIBRA. Lembro-me que tive que brigar com os colegas para permitirem a publicação de um dos meus artigos no qual eu caí de pau, com as minhas melhores metáforas, prá cima de um professor de Grego, informante do DOPS. Debito a ele, não posso afirmar, a denúncia de uma série de alunos da escola na época, um em especial, desaparecido para sempre da carteira vizinha à minha no curso de Ciências Políticas.
Nas minhas peregrinações de curso caí no de História das Artes com o PROFESSOR, de novo, PROFESSOR MOACIR LATERZA. Dentro do curso: PICASSO. Minha alma espanhola, herança da avó Manoela Agullò Durà, emergia com uma latência dilacerante. Uma das obras me fascinou: a cabeça de touro. Pablo Picasso pegou um guidão e um assento de bicicleta e os juntou formando uma cabeça de touro. O guidão e o assento em si mesmos não são uma obra de arte. E nem o ato de juntá-los desta forma necessita de uma grande perícia técnica. Mas o resultado mostra uma incrível genialidade. O guidão e o assento sempre estiveram aí, ao alcance de todos nós, mas só Picasso viu essa associação. Picasso criou, e a arte está diretamente ligada ao ato de criação. A criação ocorreu de uma forma muito simples, com objetos absolutamente triviais, restos de uma velha bicicleta, mas “A Cabeça de Touro” é inegavelmente Arte.
Há alguns anos atrás estive no Museu de Picasso em Paris e renovei em parte aquela vivência. Vi com os meus próprios olhos as gravuras, esculturas urdidas com pedaços de parafusos, torneiras velhas, enxadas que deram contornos a objetos sobre os quais, no curso com Laterza debruçávamos horas para interpretar o gênio. E uma, em especial, me levou às lágrimas: a cabeça de touro, feita com um assento e um guidão de bicicleta. Agradeço de joelhos à vida por isto.
1974 foi um ano ímpar. Eu ia mudar o mundo! Tinha amigos extraordinariamente brilhantes. Sabiam e procuravam saber de tudo que rolava de melhor nas artes, na filosofia, na música.  Nem o futebol, minha paixão incondicional, era melhor. Andávamos sempre aos bandos, nas salas de aulas, nos shows do DA, nos pátios da faculdade, na volta à pé para casa. E rola papo cabeça, e rola trama e revolução. Nós íamos mudar o Humano. Dois amigos ficarão para sempre na memória dessa época. Dennis, músico e poeta e Barreto, escritor.
Destaco, também, do período na Fafich o meu envolvimento com a encenação da peça ‘La Vida es sueño’ de Pedro Calderon de la Barca. O texto reside na abordagem da liberdade como algo tão precioso para a vida humana que, sendo o homem privado ele sofre mutações, perde o controle sobre sua consciência e deixa o instinto agir em seu lugar. Aponta a transformação do Homem para o animal, o homem dominado pela besta, ou melhor, o instinto. Fiz parte da direção e atuei no papel principal: Sigismundo, alma reprimida, muito pensativo, triste por seu longo cativeiro.
Vida breve e intensa nesse período de um ano vivido dentro da Fafich da Rua Carangola no Bairro Santo Antônio. Sempre que passo por lá sinto um gostoso aperto no coração, fazendo-me lembrar que a minha juventude não foi perdida. Aquele lugar me foi um templo.
No final daquele ano voltei para casa em certa noite. Já no meu quarto, sentei na minha cama me preparando para dormir, mas como sempre fazia, puxei uma maleta (que ficava debaixo da minha cama) onde guardava parte dos meus escritos (os mais recentes) e a abri. Tomei um susto. Ela estava totalmente vazia. Meu irmão que dormia na parte de cima da cama beliche vendo que eu os procurava, disse: ‘Mamãe queimou tudo... Teve uns caras estranhos aí ontem te procurando, ela ficou com medo, queimou tudo hoje. ’ Abri a parte de cima do armário em frente a nossa cama e encontrei minha outra mala, que eu também escondia, onde eu guardava outros tantos trabalhos e escritos.
Aquilo eu pude entender.
Só lamento hoje não poder lembrar um trecho sequer do texto repleto de metáforas (para camuflar)que escrevi para o jornalzinho do DA destilando minha indignação com um determinado professor, melhor, professor de Grego.
Até breve.


Nenhum comentário:

Postar um comentário