domingo, 19 de junho de 2011

CARREIRA VI

O ano letivo de 1974 estava encerrando. Eu e Dennis nos encontramos na Fafich e tivemos uma conversa. Ele defendeu a tese de que a poesia é inútil, que viver de letras ou música é impossível, que ele estava passando fome. Faltava dinheiro para tudo. Ele abandonaria a faculdade e ia cair no mundo para ganhar a vida. Eu tentei persuadi-lo a seguir, argumentando que ‘dinheiro pinta’.
Dennis e Barreto e outros tantos amigos seguiram a faculdade. Dennis foi ser tradutor e interprete numa grande empresa siderúrgica e Barreto redator numa agência de publicidade. Faziam seus cursos à noite na mesma Fafich. Seguiram também fazendo suas poesias, suas músicas e seus contos. Não são, pelos menos ainda, celebridades.
De fato, analisando friamente, minha situação era bem pior do que a de ambos. Em outubro daquele mesmo ano voltei aos pequenos anúncios do caderno de empregos. Cortei os cabelos como toda pessoa normal e fiz a barba. Interessei-me por uma vaga. Quando cheguei ao local para as inscrições havia uma imensa fila. O anúncio era fechado, não apresentava a empresa para qual era a demanda. Perguntei ao rapaz que estava imediatamente a minha frente e ao outro ainda e nenhum dos dois sabia. ‘Guardem o meu lugar que eu vou procurar saber, disse ao rapaz logo atrás na fila. Era uma casa na Rua Santa Catarina, no Bairro de Lourdes. Fui pedindo licença a um e a outro até chegar a uma das recepcionistas. ‘Vim para candidatar-me à vaga de auxiliar de pessoal e gostaria de saber qual a empresa que está recrutando... ’ A jovem, muito simpática, disse: ‘Você deve entrar na fila... ’ ‘Sim, eu já estou lá atrás na fila, mas eu gostaria de saber qual a empresa que... ’ ‘Fiat Automóveis’, ela disse.
Sem chances de bilhete, voltei para o meu lugar na fila e esperei duas horas e meia até chegar a minha vez de ser atendido. Preenchi a Ficha de Inscrição, aguardei mais uma meia-hora e fui chamado por um rapaz alto e simpático que gostaria muito de saber sobre a minha vida. Por duas vezes a supervisora do cara entrou na sala repreendendo-o pela altura das suas gargalhadas. O cara chegou a chorar de rir com minhas histórias, algumas construídas ali mesmo na medida em que o entrevistador se interessava por um tema. Grande Aloizio. Ele encaminhou-me para exames psicológicos. Tremi.
No dia seguinte voltei a casa na Rua Santa Catarina e enfrentei nova fila. Quando chegou a minha vez uma jovem, também alta, com um olhar inquisidor recebeu-me, disse que se chamava Etur e que eu passaria a partir dali por uma bateria de testes psicotécnicos e psicológicos. Duas horas e meia depois deixei a sala de testes torrando os cabeçotes. Etur agradeceu a minha participação até ali e disse que eu receberia um telefonema caso eu fosse continuar no processo. Não dormi e nem me alimentei direito no período que transcorreu entre o momento que eu saí dali até o momento que o telefone tocou e eu corri para atender: ‘é prá mim!’, gritei para meus irmãos presentes na sala onde ficava o aparelho. ‘José Lopes? Aqui é (não me lembro), gostaria de marcar uma entrevista com a Dra. Etur contigo, é possível? Aqui entre nós, tem cada pergunta que dá vontade de responder mais ou menos assim: NÃO SUA ANTA! A MINHA VIDA ESTÁ MARAVILHOSA E EU NÃO QUERO SABER DE NENHUMA FIAT. E desligar o telefone na cara da fulana. ‘Claro, com o maior interesse, é só marcarmos o dia e a hora que eu estarei presente, obrigado. ’
Etur, uma mulher sisuda, séria com um olhar inquisidor, vasculhou a minha vida de cabo a rabo.  Relações familiares, empregos anteriores, atividades realizadas, preferências de lazer, medos, interesses, projetos futuros e se eu pretendia continuar estudando Letras. Ela não sorriu uma vez sequer e eu fui o sujeito mais sério que alguém pode parecer ser. Antes de a entrevista terminar entrou uma jovem na sala dizendo que o Eliseu estava por acaso na casa e que gostaria de aproveitar e entrevistar os candidatos à vaga de auxiliar de pessoal.  Terminada a entrevista, Etur levantou-se da cadeira estendeu a mão para despedir-se e disse: ‘O processo encerra aqui. Aguarde em casa o resultado da avaliação. ’
Quando saí da sala fui direto ao encontro da jovem que havia entrado na sala de entrevistas. ‘Eu sou um dos candidatos à vaga de auxiliar de pessoal, você disse que o Coliseu está aqui para fazer entrevistas... ’ ‘É Eliseu... ’ ‘Oh, me desculpe, é isso Eliseu... ’ Ela, então, levou-me ao encontro de Eliseu, o gerente da área.
Passaram-se duas semanas depois da entrevista com o Eliseu. Todo dia pela manhã eu corria a caixa de correio para saber se havia correspondência, um telegrama talvez. Nada. Em paralelo minha vida afetiva seguia um curso de definição. Havia decidido me casar. Voltei então aos pequenos anúncios do caderno de empregos. Auxiliar de Pessoal para uma empresa construtora com obra em Lafaiete. Uma semana depois eu estava empregado.
O alojamento era ao lado de uma estrada de ferro. Eu não sabia deste pequeno detalhe, porque havia chegado lá após o primeiro dia de trabalho já no final da tarde. Por volta das duas horas da madrugada, eu dormia pesadamente quando senti a minha cama tremer de levantar do chão. Pulei desorientado. Dormiam no mesmo quarto outros três empregados da construtora que deram gargalhadas. Eu gritava que era um terremoto e que a casa ia cair. Cinco e meia da manhã um caminhão, com a carroceria coberta por lona, parava na porta do alojamento. Os empregados mais graduados entravam na boleia e os outros iam atrás, na carroceria. Como a estrada era de terra até a obra era difícil manter-se assentado nos bancos de madeira.
No primeiro dia de trabalho recebi um pacote de retratos ¾ dos empregados contratados e que deveriam ter suas fichas de registro preenchidas à máquina e fixados os seus retratos no espaço destinado. Era uns duzentos, o que me aplicaria durante pelo menos a primeira semana de trabalho. Os nomes foram colocados no verso dos retratos, coloquei a ficha de registro em ordem alfabética e colei os retratos obedecendo a essa ordem. Na sexta-feira, no final da tarde, procurei uma carona para voltar para casa em Belo Horizonte.
Vim com um dos engenheiros da obra pilotando, literalmente PILOTANDO, uma camionete. O cara veio a 180/200 por hora de lá até aqui. Fiquei com as pernas doendo de tanto pressionar o piso da camionete. Quando nós chegamos na Av. Nossa Senhora do Carmo (na época era ainda santa) o cara falou: ‘Mais uma vez vivo! Quer vir comigo na segunda?’Ao que eu prontamente respondi: ‘Não, muito obrigado, não quero te dar este trabalho’. Ainda bem que ele não insistiu. Quando desci da camionete,  pus os pés no chão e despedi-me do engenheiro tive a nítida sensação que eu havia nascido de novo. Alguns meses depois vi o retrato dele no jornal abaixo de uma manchete: ENGENHEIRO MORRE EM ACIDENTE.  
Na segunda-feira, bem cedo, quando saía disse a minha mãe: ‘Se alguém me ligar da FIAT a senhora, por favor, peça uma das meninas para ligar prá construtora em Belo Horizonte que eles comunicam comigo através de rádio... Agora, é muito importante que as meninas digam que a senhora está muito mal e que gostaria que eu estivesse aqui... ’ Minha mãe, apesar de não entender muito bem as razões, concordou e eu fui para Lafaiete. Eu não havia datilografado ainda minha Ficha de Registro e nem colado a minha foto ¾. Tinha esperanças ainda, mas se não fosse chamado pela FIAT minha idéia era seguir na construtora.
Na quarta-feira, pouco antes do almoço entrou um rapaz na minha sala com o rádio na mão avisando que acabara de receber a informação de que minha mãe estava num hospital muito mal e que era para eu ir imediatamente para Belo Horizonte. Voltei com todos os retratos espalhados pela mesa para dentro de um saco e com as fichas de registro para dentro do arquivo. Tratei imediatamente de conseguir transporte para Belo Horizonte.
Foi minha mãe que me recebeu no portão de casa. Ela estava radiante de alegria, abraçou-me efusivamente.
Até breve.  

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