sexta-feira, 5 de março de 2021

TRALHA II

 


Ainda sobre a tralha. Não sobre ela em si, porque repugna. Meia dúzia de palavras sobre o que dela resultou: uma sociedade em frangalhos, que a mim desespera.

Estamos há décadas nos digladiando em diferentes instâncias, até as mais íntimas, sobre em que mãos vamos colocar o nosso destino. E o debate vem esgarçando o tecido das já naturalmente frágeis relações.

Famílias se romperam, casais, parceiros comerciais, intelectuais, artistas, amigos históricos em defesa de qual dos proponentes aos palácios é mais honesto, se da direita ou da esquerda, se vermelho, verde-amarelo, azul, com convicções próximas à daqueles que julgaram as Bruxas de Salem.

Além da miséria econômica profunda, que nenhum “auxílio” indigno vai dar conta de tamponar todo o fosso em que se abriu a vergonhosa injustiça, a tralha nos legou a miséria relacional. Nossos projetos estão prejudicados porque não é possível o diálogo.

Uma sociedade em que não há diálogo de propósitos é uma sociedade miserável.

Nossas referências para o debate estão caducas, postas no milênio passado, “acusamos” o nosso oponente como comunista, ou capitalista, fascista, termos já carcomidos pela modernidade.

Nada mais vazio que uma suposta ofensa ideológica. As ideologias resultaram inúteis, nossos luminares ideólogos do século XIX e XX as formularam em um tempo absolutamente distinto do que vivemos no presente.

A tralha ainda as usa para dar um verniz sórdido ao debate. E a sociedade “aceita” com traço de catatonia aguda, sintoma marcante de sua patologia.

Sim, adoecemos e o estado é grave. Não bastasse a complexidade de construir um outro tempo diante de tantas variáveis complexas, fomos vitimados ainda por uma moléstia em escala global.

Torna-se, portanto, imperioso que se alargue a escuta do outro para que se dissipe tantos entulhos de significados e significantes contaminados por uma cegueira e surdez trazidas por satrapias.

É passada a hora de nos perguntarmos: em que mundo quero viver o melhor de meus dias, onde, com quem e sobretudo, por quê.

O filósofo (*) “louco” escreveu: “Quem tem um porque para viver, pode enfrentar quase todos os comos.”. Mesmo que, para tanto, tenha que abandonar essa tralha.


Até breve.

(*) Nietzsche


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