segunda-feira, 15 de junho de 2015

SOMBRA





“Não, Van Gogh não era louco, mas seus quadros eram misturas incendiárias, bombas atômicas, cujo ângulo de visão comparado com o de todas as outras pinturas que faziam furor na época, teria sido capaz de transtornar gravemente o conformismo larval da burguesia.

Os corvos pintados dois dias antes de sua morte não lhe abriram, mais que suas outras telas, a porta de uma certa glória póstuma, mas abrem à pintura pintada, ou melhor, à natureza não-pintada, a porta oculta de um futuro possível, de uma permanente realidade possível, através da porta aberta por Van Gogh para um enigmático e pavoroso além.

Todo o quadro é soberbo.

Digno acompanhamento para a morte daquele que, em vida, fez girar tantos sóis ébrios sobre montões de cereais rebeldes e que, desesperadamente, com um balaço no ventre, não pode deixar de inundar com sangue e vinho uma paisagem, empapando a terra com uma última emulsão, radiante e tenebrosa ao mesmo tempo, que cheira a vinho azedo e vinagre picante.

É isso o que mais me surpreende em Van Gogh, maior pintor entre todos os pintores, é que, sem sair do que se denomina pintura, sem afastar-se do tubo, do pincel, do enquadramento do tema e da tela, sem recorrer à sátira, ao relato, ao drama, à ação com imagens, à beleza intrínseca do tema e do objeto, chegou a infundir paixão à natureza e aos objetos com tanto vigor que qualquer conto fabuloso não supera em nada, dentro do plano psicológico e dramático, suas telas modestas; suas telas, por outro lado, quase todas de reduzidas dimensões, como se respondessem a um propósito deliberado.

Van Gogh era uma dessas naturezas dotadas de lucidez superior, o que lhes permite, em qualquer circunstância, ver mais além, infinita e perigosamente mais além que o real imediato e aparente dos fatos; quero dizer, mais além da consciência que a consciência habitualmente conserva dos fatos.

Theo talvez fosse muito bom para seu irmão, do ponto de vista material, mas isso não o impedia de considera-lo um delirante, um iluminado, um alucinado, e se obstinava, em vez de acompanha-lo e seu delírio, em acalmá-lo.

Que depois morreu de pena, não muda nada as coisas.”

Retirei estes trechos do livro “VAN GOGH - O SUICIDADO PELA SOCIEDADE”, publicado em 1947, pelo poeta, escritor, ator, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês ANTONIN ARTAUD.

Por quê?

Ontem fui assistir à peça “O outro Van Gogh”. Texto de Maurício Arruda de Mendonça, direção de Paulo de Moraes e interpretação de Fernando Eiras. O espetáculo localiza-se nos últimos dias de vida de Theo Van Gogh (1857-1891), irmão, confidente e mantenedor do grande pintor holandês Vincent Van Gogh (1853-1890).

Internado numa casa de saúde, abalado pelo repentino suicídio de seu irmão mais velho, pelos pesados encargos de sustento de sua mulher, filho e de seus pais, e já sofrendo os mesmos sintomas radicais da doença mental dos Van Gogh, Theo repassa acontecimentos afetivamente importantes na sua relação com Vincent em sua luta por tornar-se um pintor. Como num réquiem, o texto fala, sobretudo, do amor visceral que uniu e levou à morte esses dois irmãos.

Em “O Outro Van Gogh” o ator em cena é ninguém e todo mundo ao mesmo tempo. Um Mundo bordado de uma memória viva, que preenche o palco de personagens. Theo Van Gogh busca encontrar através da ausência do outro, o irmão Vincent, uma saída para a luz. O que é essa sombra que tenta captar sua própria cor? Quem somos nós que tentamos encontrar no outro algum sinal que nos dê consciência de nós mesmos?

Theo Van Gogh nasceu quatro anos após seu irmão Vincent. Viveram juntos durante toda a infância e adolescência, estreitando com o passar do tempo, uma amizade preciosa que duraria uma vida inteira.
Foi por causa de Theo que , posteriormente, o mundo conheceu a obra de Vincent Van Gogh, que iria influenciar todo século 20. 

Theo não só cuidou das telas, como as financiou e também sustentou o irmão, para que ele pintasse. Ambos ocuparam a mesma gangorra no comércio das galerias de pintura: um era Pintor, o Outro era marchand. Por mais talentoso, reconhecido e respeitado negociante que Theo fosse (tendo ativamente contribuído para o movimento impressionista ocorrido em Paris em 1884) não havia meios de conseguir vender os quadros do irmão. O mundo das artes ainda não era capaz de avaliar o traço inovador de Vincent.

Saí do teatro experimentando um misto de encantamento pela magistral performance do ator Fernando Eiras que, em dado momento do espetáculo (não sem razão), disse:

- Esse personagem arrasa comigo...

Arrasa de fato a todos nós, indignos que nos acovardamos de tantas maneiras para que seja possível que a genialidade sobrevenha e dissipe os corvos, todos eles, de nossa paisagem.

Ainda em Artaud: “É assim que se mantém – por mais delirante que possa parecer tal afirmação – a vida presente, na sua velha atmosfera de estupro, de anarquia, de desordem, de desvario, de descalabro, de loucura crônica, de inércia burguesa, de anomalia psíquica (porque não é o homem, mas o mundo que se tornou anormal), de desonestidade deliberada e insigne hipocrisia, de sujo desprezo por tudo o que cheira à nobreza, de reivindicação de uma ordem baseada no cumprimento de uma primitiva injustiça; em resumo, do crime organizado.”

Chega de obscurantismo!



Até breve.

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