sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

SEIVA I

Pascoala era mesmo linda, acho que qualquer homem perderia sim a cabeça por ela, se mataria sim. Naquela época as pessoas se amavam e acreditavam que deveriam fazer um projeto que levasse a vida toda. Veridiano quando fugiu de Uberaba para ir ao encontro dela tinha presente que sua vida só faria sentido se fosse com sua menina de quatorze anos. Casaram-se, tiveram filhos e netos e viveram juntos a vida inteira. Sei que Pascoala era “arrasa quarteirão” por força de uma de suas netas, por quem vivi uma de minhas primeiras paixões.
Veridiano e Pascoala, meus tios responsáveis pela permanência no Brasil da família de meus avós paternos, eram mesmo diferenciados. Veridiano é da primeira turma de práticos que por força de lei de Getúlio Vargas pode fazer exames e se diplomar em Odontologia. Tomou bomba em prótese e tia Pascoala arrumou os trem para ir embora se Veridiano não voltasse para a escola.
Não me esqueço deles em duas oportunidades: uma, suas bodas de diamantes. Puta exemplo de propósito. Acho que esse episódio teve relevância no rol de minhas escolhas que fiz ao longo da vida. A outra: lembro-me de um dia que meus pais desentenderam-se e espalharam a filharada para os quaro cantos e eu e uma de minhas irmãs fomos levados para casa deles. Ficou desse dia o gosto do peixe que tia Pascoala preparou para o almoço. De Veridiano lembro-me que era gordo, bonachão, sempre assobiava alto quando chegava em qualquer ambiente. Reclamava apenas de que minha avó sempre exigiu dele solidariedade quando minha tia ficava grávida: minha avó dava a Pascoala e Veridiano a mesma dose de purgante.

Carlos, meu tio mais velho, na verdade não era filho de minha avó Manuela. Era fruto do primeiro casamento do meu avô, Ramon. Não o conheci, ele retornou para a Espanha na época da guerra civil, quando os comunistas foram perseguidos e torturados até a morte e, outros, não comunistas foram igualmente perseguidos, entre esses, meu tio Carlos.
Há um episódio marcante envolvendo-o. Ele foi denunciado, provavelmente por interesses escusos de um colega de profissão, como comunista. Ficou preso durante quatro anos, numa masmorra, com mais dez companheiros. Invadiram sua casa, carregaram tudo que nela se encontrava: equipamentos, materiais de construção. Sua esposa Frasquita, com o filho de colo, não resistindo entrou em depressão aguda a ponto de não poder criá-lo, confiando-o a uma amiga.
Frasquita, sem recursos de qualquer espécie, com a idéia fixa de salvar o marido dos horrores da prisão, onde os presos morriam de fome e de falta de cuidados médicos, fazia caminhadas de porta em porta pedindo comida. Em suas visitas diárias à prisão, onde lhe era permitido levar comida para o marido, ela conseguiu também alimentar os companheiros de Carlos. Não conseguiu, porém, salvá-los. Meu tio Carlos escapou da morte por fuzilamento. Foi julgado inocente e voltou às suas atividades.
Frasquita, contudo, não conseguiu livrar-se da depressão. Minha tia Modesta visitou a família em 1966. Encontrou Frasquita cuidando de trabalhos domésticos auxiliando uma nora, mas com sintomas expressivos das perdas no passado. Minha tia me contou que achou estranho que Frasquita guardasse, até então, num quarto, como relíquia intocável, um prato contendo restos de comida, ainda do tempo em que Carlos estava na prisão.

Modesta era, dos meus tios, a mais próxima de minha família. Por um episódio trágico na sua infância, quase ficamos sem ter o seu convívio. Quando da viagem da Argentina para o Brasil ela, então com quatro anos de idade, fugiu do controle de minha avó e, curiosa, foi conhecer a cozinha do navio e desapareceu. Cerca de quatro horas depois foi encontrada com um ferimento na base posterior do crânio. Havia caído do alto do convés em um emaranhado de tambores e outras coisas.
Dela, algumas lembranças. Ela era adolescente e havia concluído os trabalhos manuais na escola onde estudava. Dentre os trabalhos havia um chapéu de lã azul de crochê que nem todas as alunas haviam feito e, portanto, não receberiam a nota.  Uma amiga, que não gostava de trabalhos manuais, depois que Modesta já havia apresentado o chapéu à professora e recebido a sua nota, pediu à minha tia que lhe emprestasse e o apresentou novamente como seu. A professora deu a nota à amiga, mas reteve o chapéu, não fazendo nenhum comentário. Na saída pediu à tia Modesta que trouxesse no dia seguinte o chapéu, porque ela gostaria de ver apenas um detalhe na peça.
Tia Modesta ficou louca. Em casa minha avó percebeu o seu embaraço e mandou minha tia comprar lã azul e outros apetrechos. No dia seguinte, pela manhã, minha avó entregou o chapéu pronto para minha tia que, feliz, levou à escola. A professora ao recebê-lo disse: “Você ou alguém fez este chapéu durante a noite. Eu deveria dar-lhe zero, mas pelo sacrifício feito conservo a sua nota. Lembre-se, porém, de que na vida não se pode agir assim. Cada pessoa deve assumir seus atos e ser julgada por eles. Não se esqueça disso jamais.”
Outra passagem. Ela e meu pai (eram crianças) descobriram que muita gente apanhava paus de lenha que caiam dos vagões da Central Ferroviária, ao longo da linha férrea, nas proximidades da Praça da Estação, em Belo Horizonte. Duas vezes por semana, nos horários livres dos afazeres domésticos e da escola, eles passaram a pegar lenha que, na época, era muito cara. Por isso eram recompensados pela minha avó que, no final de semana, dava a meu pai e a minha tia uns trocados para eles irem ao cinema Floresta.
Assistiram a filmes de aventuras, seriados inesquecíveis, rodados uma vez por semana. Seus ídolos eram fortes e destemidos, defensores dos fracos e oprimidos, duros e inflexíveis com os corruptos. Vibravam com os atos de heroísmo. Os seriados se prolongavam por meses e a volta ao cinema era inevitável, pois, ansiosos, desejavam saber de tudo até o fim.
A família de meus avós morou em uma casa que foi construída por meu avô e meu pai, onde existia a mina d’água. A casa estava semi-acabada, sem reboco nas paredes internas e externas, sem piso revestido, sem portas internas. Um dia, Modesta subia a rua de casa e ouviu um vizinho comentar com outro: “Imagine, além de buracos, esta rua agora tem até casa sem reboco.” Chegando em casa comentou com minha avó que, achando graça na indignação da filha, a tranquilizou: “Você, no futuro, vai ter a casa rebocada e vai ajudar muita gente a lutar pela sua.”
Modesta não se casou, ou melhor, casou com sua infinita dedicação aos outros. Tornou-se a primeira Assistente Social de Minas Gerais, fundando e trabalhando em inúmeras instituições de apoio e desenvolvimento social no estado e no país. Na véspera de sua morte, chamou uma de minhas irmãs e deu-lhe diversas instruções a respeito do que gostaria que fosse feito a partir do dia seguinte. Terminando pediu a minha irmã que a levasse para um determinado hospital onde gostaria de morrer. Faleceu na madrugada.

As nuances da família paterna são marcas indeléveis no meu sangue. Senti-as presentes em viagens à Espanha e a Argentina. Numa praça em Sevilha emocionei-me profundamente ao ver, em um monumento referenciando Alicante, um azulejo que meu avô reproduziu e fixou na fachada da casa da rua Monte Carmelo, no Bairro Floresta, onde tinha uma mina d’água.
Agradeço à vida por ter me proporcionado alguns papos com Tia Modesta e colhido parte de seus escritos e, agora, poder estar fazendo esse singelo registro.

Até breve.

PS : De meus outros tios, Teresa, Evaristo, Antônio, Francisca (Paca), Irene e Ramonito não trago nada que possa guardar. De meu pai, essa é uma grande história que ainda será trazida aqui.

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