sábado, 18 de março de 2017

QUÊ



Matheus não arrebata como cantor, especialmente quando o pano se abre. É tudo que se pode falar sobre a experiência que se vive no desenrolar das cenas.

Processo de Conscerto do Desejo, que fomos assistir ontem no CCBB, no entanto, que Nachtergaele nos oferece, e, especialmente no tempo presente, é soberbo.

No programa da peça ele escreve:

“Poucas palavras se confundem tanto em nossa língua quanto ‘concerto’ e ‘conserto’. Aqui, elas se mesclam vertiginosamente. A palavra desejo, em filosofia, seria a tensão em direção a um fim de onde se espera satisfação. Tradicionalmente o desejo pressupõe carência, ou alguma forma de indigência: um ser que não carecesse de nada, não desejaria nada. Seria um ser perfeito, um Deus. Por isso a filosofia, tantas vezes, considera o desejo como característica primeira do ser imperfeito, do ser finito.”

Transformar a experiência pessoal em arte é um caminho de inspiração recorrente para atores e dramaturgos. Levar sofrimentos e traumas para o palco, no entanto, exige uma dose extra de coragem e desprendimento.

O ator e diretor, que alço no Olimpo de Paulo Autran e Juca de Oliveira, constrói ao longo de anos de pergunta uma imagem idealizada de sua mãe, a poeta Maria Cecília Nachtergaele, que se matou quando ele tinha só três meses, em 1968, aos 22 anos.

O sofrimento do filho fica disfarçado, e Nachtergaele transforma-se na própria personagem trazendo à tona poemas escritos por ela e reconstituindo histórias ouvidas no decorrer da vida, até quando o seu pai entrega-lhe (Matheus estava com dezesseis anos de idade) os poemas escritos por ela e conta como a mãe havia morrido.

Em sua entrega, o ator traça um retrato lírico de Maria Cecília e foge do aprofundamento em temas pessoais e mais dramáticos. O protagonista, embebido de arte, se coloca no lugar da mãe na tentativa de entender suas motivações.

A memória, ora vestida de som e luz, ora de silêncio e sombra, mas, sobretudo, impregnada na narrativa poética, é o fio condutor do espetáculo. Ao se fundirem, no neologismo “conscerto”, as palavras concerto e conserto revelam duas intenções, a do espetáculo e da restauração através da poesia. O artista explica, objetivamente: “Quero consertar meu desejo com poesia, num concerto.”.

A música trazida tirada de violão e violino por Luã Belik e Henrique Rohrmann embebedam segundando e suportando o texto de forma esplendorosa. Quando resta em cena somente a música, em raro momento, Luã sola, a luz foca apenas ele e aos poucos Mateus se aproxima e se senta aos pés do músico. Matheus se enreda nas pernas do músico como se quisesse fazer música e poesia uma coisa só.

Maravilhosa a escolha da canção de Sérgio Endrigo, que Marília Cécilia adorava, Io Che amo solo te, que Matheus interpreta. Io ho avuto solo te/e non ti perdero/ e non ti lascero/ per cercare nuove aventure, além de, io mi fermero/ e ti regalero/ quel che resta della mia gioventu.

Em entrevista, Matheus disse: “O espetáculo é simples assim: um homem (que por acaso é um ator) diz no palco as palavras escritas por sua mãe. Um violão (não por acaso, pois Maria Cecília amava os violões) o acompanha. É só isso, se isso for pouco.”.

Maria Cecília lança o filho a uma nova aventura e deixa o que lhe resta, a sua juventude. Ela foi uma mulher feminista, nos anos 60, que reivindicava mais ternura no mundo dos homens.

Em momento comovente e contundente da peça, Matheus lança holofotes sobre a plateia vem para junto do público e diz um dos poemas mais expressivos da poetisa, no qual há uma proposta: sempre e, sobretudo, amem.

Este espetáculo é um tributo à mulher, dramaticamente ceifada pela poesia que a levou a uma insustentável leveza de angústia depressiva pós-parto, mas nos deixa diante da vida para continuar tentando.

Minutos antes de o espetáculo começar houve um princípio de manifestação política e, imediatamente ocorreu um rechaço à ideia. Parece que se percebeu que viria ali algo que não trataria do Homem e do seu tempo, mas do Humano. O demasiado humano.

No final Matheus convida Elis Regina, que faria ontem aniversário, sugere uma canção dela e deixa a plateia.

Ainda há um quê pelo que viver.





Até breve.

NOTA: Aliás, estivesse aqui, minha mãe faria aniversário ontem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário