terça-feira, 26 de agosto de 2014

MICROFONIA



Ontem, no final da noite, recebi a ligação de uma pessoa aflita. A voz alterada eletronicamente não me permitiu identificar se era um homem ou uma mulher, jovem ou idosa. A pessoa estava aos gritos.

Pensei em desligar logo que atendi e supus tratar-se de um trote. Só que logo a pessoa foi dizendo que era de suma importância que eu a ouvisse, que somente ela teria tido a coragem de me ligar e me colocar a par de determinadas questões as quais, somente eu, poderia ser capaz de dar curso.

Insisti para que ela, a pessoa, se identificasse e que se não o fizesse eu desligaria. Ela respondeu que não havia a menor importância em se apresentar como alguém em especial, especifico, com nome, endereço, telefone e CPF, essas coisas.

O que fiz então foi me calar depois de ter perguntado uma ou duas vezes se a pessoa queria falar era a mim mesmo. Ela então reduziu sua aflição e, ainda que aos gritos, desordenadamente, continuou apontando as questões que “somente eu poderia dar curso”.

Peguei uma caneta e papel e, com dificuldade, passei a anotar aquilo que ouvia de um só fôlego da atormentada pessoa. Aos poucos, talvez por força do estridente som eletrônico da fala ou da natureza de seu conteúdo, eu passei a me sentir como que se estivesse sob o efeito reverso de anestesia, levando-me à intensa excitação.

Houve um momento, porém, que eu a interrompi. “Espere, pare de falar por um instante! Dê-me um tempo para pensar no que você acabou de dizer”. A pessoa suspendeu imediatamente a fala e eu passei a ouvir somente a sua respiração ofegante do outro lado da linha.

Quando ela voltou a falar estava, como se estivesse se aliviado, mais serena e me pediu desculpas por estar me abordando daquela forma. Pausada e muito mais clara do que fora até então fez uma síntese do que havia dito e retomou a abordagem das questões.

A ligação deve ter durado hora e meia com maior parte do tempo servida à pessoa. Eu fui de um momento inicial de surpresa, passando por euforia, depressão, incredulidade, torpor, aceitação, negação, piedade, revolta até que, abruptamente, a pessoa sem terminar uma frase e sem se despedir, desligou.

Eu fiquei alguns minutos em estado de catatonia pura com o olhar passeando sobre as linhas tortas das palavras que consegui anotar. De repente senti meu corpo movimentar-se na poltrona, eu teria estado durante todo o tempo da ligação com os músculos de tal maneira retesados que ao me movimentar senti dores nas articulações.

Levantei-me com dificuldade, estendi meus braços acima da cabeça e uni minhas mãos uma à outra tentando atingir o teto. Fui ao banheiro social e me fitei no espelho. Abri a torneira da pia e por diversas vezes banhei o meu rosto. Debrucei-me com as mãos postas sobre a pia e permaneci assim - por um tempo, paralisado -, fitando-me no espelho.

Dirigi-me à cozinha, abri a porta da geladeira, peguei a caixinha de suco de soja, sabor pêssego. Estendi uma das bandas da janela e olhei em direção à rua. Vazia, silenciosa, erma.

Minutos depois eu estava em minha cama. Dormi com a firme intenção de começar a tratar das questões que somente eu poderei dar curso.



Até breve. 

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