sexta-feira, 8 de maio de 2020

ADUBO






Por favor, vocês que estão aí deste lado. Pegue na terceira prateleira o recipiente de número JLAJ – 81.91.103.107.104. Tragam-no aqui e o coloquem sobre a bancada. Dentro daquele armário há folhas de cartolina branca, peguem, por favor, e coloquem uma delas aberta também sobre a bancada.

Fechem, por favor, todas as janelas e suas venezianas. Não convém que nenhum vento possa alvoroçar o que está dentro do recipiente.

Lavem suas mãos, depois as enxugue bem. Passe bastante talco e vistam as luvas que encontrarão naquela pequena gaveta da escrivaninha. Encontrarão também máscaras esterilizadas, por favor, as coloquem.

Agora se concentrem, por favor, no que vai se seguir.

Abram delicadamente o recipiente colocando-o sobre a folha de cartolina para que, se caso no abrir, alguma parte do conteúdo não possa se perder. Agora virem o recipiente para baixo e deixem que o conteúdo caía sobre a folha de cartolina. Batam levemente com as mãos sobre o fundo do recipiente e verifiquem que nada, nenhuma partícula por mais ínfima que seja do conteúdo ficou ali.

Deixem o conteúdo, por entre 23 e 27 minutos, do jeito que saiu do recipiente e caiu sobre a folha da cartolina. Passado este tempo comecem levemente, com apenas a mão direita e usando pinças que estão sobre a bancada, espalhar o conteúdo de tal sorte que cada partícula possa ficar absolutamente isolada, sem contato com nenhuma outra. Se necessário usem lupas. Ali naquele armário encontrarão algumas.

Sem pressa, por favor. Não há necessidade de construírem nenhum desenho ou forma específica, apenas cuidem para que cada partícula permaneça isolada. Tirem as luvas ao terminarem e as coloquem sobre a bancada fora da cartolina onde depositaram o conteúdo do recipiente com os eventuais fragmentos que se prenderam viradas para cima. Não tentem sacudir as luvas, ou mesmo, com a mão esquerda, tirar o conteúdo do recipiente que se prendeu lançando-o sobre a cartolina.

Lavem as mãos, joguem fora no cesto de lixo, as luvas e as máscaras esterilizadas. Deixem, por favor, o recinto e voltem aqui dentro de 30 minutos. Eu ficarei zelando para que ninguém bula e examinando, daqui, cada partícula deste novo formato sobre a cartolina branca.

Ao retornarem, caso me encontrem dormindo, não me acordem, esperem que eu mesmo desperte. Sobre a bancada encontrarão o relatório de análise de cada partícula, por favor, não o leiam em hipótese alguma. Coloquem as páginas escritas dentro do balde de alumínio que está naquele armário e as incinere. Peguem as cinzas das páginas do relatório e as misture com o conteúdo do recipiente distribuído sobre a folha de cartolina. Não antes de esperarem que esfriem as cinzas do balde.

Coloquem tudo novamente dentro do recipiente sem deixar perder nem uma partícula sequer. Voltem-no para a prateleira com o código virado para frente.

Quando meus entes queridos vierem buscá-lo digam que o meu desejo é que tudo se esvaeça sobre o solo de minha morada, terra onde experienciei inúmeras e calorosas alvoradas.

Que assim seja.

É que somente há coisa de duzentos anos, os humanos deixaram de refletir sobre a finitude.

Até breve.

NOTA: Hoje o blog está completando nove anos. Ufa! Quase mil e duzentos posts depois eu escolhi um deles que já havia editado para comemorar a Vida. Em tempos de riscos pandêmicos quero deixar um desejo quando de minha passagem. Não deveria interpretar, mas vou fazê-lo: o texto propõe que minhas cinzas sejam misturadas com as páginas que escrevi e lançadas em nossa casa de Santa Luzia. Muito obrigado a todos que de uma forma ou de outra me incentivaram a dar uma modesta contribuição às letras.


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