segunda-feira, 26 de junho de 2017

ENTREMENTES



O que afinal está acontecendo?

Surpreendi-me com a classificação como COMÉDIA do filme O Cidadão Ilustre.

Ontem fui assistir à peça O Escândalo de Philippe Dussaert e, para minha maior surpresa, ela também foi “enquadrada” como COMÉDIA tendo inclusive ganho o troféu de melhor espetáculo no gênero em cartaz na cidade do Rio de Janeiro em 2016.

Marcos Caruso, que encena o monólogo, ao receber o prêmio falou em seu discurso de agradecimento: “O humor salvou um texto que no Brasil poderia ter dado completamente errado”.

O que pode ser considerado arte contemporânea? Qual a dimensão valorativa atribuída àquilo que conquista o direito de ser assim nomeado? O que é o artista? Como se pode defini-lo, reconhecê-lo? Qual a diferença entre um quadro feito por um chimpanzé com coordenação motora suficiente para jogar tintas em uma tela, e outro, feito por qualquer humano, figurativo ou abstrato?

O solo “O Escândalo Phillipe Dussaert”, do dramaturgo francês Jacques Mougenot que na França é interpretado pelo autor, com mais de 600 apresentações em temporada há dez anos, tem como “graça” as curiosas observações do dramaturgo sobre o lugar e o valor da arte contemporânea.

No Brasil, Caruso estabelece vínculo com o espectador a partir de uma naturalidade que não rouba a impostação mais formal do texto e o tom agudo de sua crítica. O ator conquista a plateia, trazendo-a para o centro da cena com a facilidade de uma conversa afiada pela cumplicidade de uma “troca de ideias”.

O monólogo em forma de conferência revela a existência de um pintor, o tal Philippe Dussaert, que de copista dos clássicos, evolui para produção heterodoxa e fica conhecido por pintar quadros conceituais – o fundo de obras conhecidas. “Monalisa”, de Leonardo Da Vinci, por exemplo: retirando a mulher do enquadramento, o que resta? O fundo. É o que ele pinta. Ele faz isso para várias pinturas, retirando o que há de vida humana ou animal, firmando seu nome nos museus e galerias. Sua série “ao fundo de…” se torna um sucesso. As mudanças sofridas por sua obra, pequena – restrita a 18 telas -, mas polêmica provocam sismos na crítica, na academia, na política de aquisição de museus internacionais e até mesmo no Ministério da Cultura da França.

Vida e criação do artista são expostas pelo conferencista que confessa não ser especialista em arte, muito menos jornalista ou marchand, apenas alguém interessado em desvendar o mistério que envolve intrigante existência e invenção provocativa. Ao desvendar para a plateia os motivos de tanta celeuma em torno de um artista praticamente desconhecido, o palestrante conclui que a verdade do personagem somente será descoberta pela ilusão mentirosa do teatro. Mas, se essa é a conclusão poetizada, o percurso é mordaz em relação à arte contemporânea. Nada fica de pé no circuito artístico, da necessidade do discurso à “significância do não signo”. Da manipulação mercadológica à “representação do nada” e da “plenitude do vazio”.

O conferencista revela o “escândalo”: inquieto com “ao fundo de…”, Phillipe Dussaert anuncia uma nova exposição, “No Fundo”, para mostrar o que estaria ao fundo do fundo – ou seja, por trás da paisagem. Quando os convidados chegam à galeria, a encontram vazia: não há nem mesmo uma tela em branco, ou uma moldura. Dussaert se desfaz de forma e conteúdo levando sua obra à limitação de um conceito. “No fundo” é o nada. E essa obra termina vendida para o governo francês em um leilão por oito milhões de francos. É aí que se inicia a discussão: o Estado está jogando dinheiro fora adquirindo uma ideia (o nada) ou “No Fundo” pode mesmo ser considerada como arte e, portanto, valer tanto.

Contemporânea, ousada, a peça escapa à simplicidade das velhas classificações de gênero dos manuais. Simula ser uma encenação-conferência. A rigor é um ato do espírito, decidido a derrubar grandes certezas – em especial a certeza de que devemos acreditar em histórias bem contadas.

Não tem nada de comédia. Há uma construção dramatúrgica rigorosa. A encenação segue um texto, mas tem a forma do teatro contemporâneo mais atual, misto de presença, performance e representação. Como o ator é exuberante, magistral mesmo, a sessão se transforma em ato de encantamento. Irresistível para quem gosta de arte, escandaloso para quem ama teatro.

E os motivos? Fácil, tanto o texto como a encenação oferecem tudo aquilo que o melhor teatro possui – belas ideias, arrebatamento, humor, a possibilidade de novas visões da vida e da sociedade. A ironia e a sutileza garantem o riso farto, como se fosse uma comédia muito espirituosa, atrevida mesmo. E, no entanto, o foco é sério, apenas a imoralidade das transgressões mais profundas, aquelas que afetam a ética, ignoram os valores básicos essenciais para a vida em sociedade. Transgressões contra todos nós, cometidas pela arte, em nome da arte.

A trama tem aparência singela, mas se torna bastante densa graças à reviravolta final, que não deve ser revelada.

A metralhadora do texto mira em todas as direções, acerta em tudo: a arte, os artistas, os turistas da arte, os críticos de arte, a imprensa, o público de arte, os marchands, a academia, os doutos e professores, os museus, os Ministérios da Cultura. Sim, é claro que os deslumbrados pela vanguarda sofrem mais: os americanos, os alemães, os israelenses e – não podiam escapar – os belgas, todos representados por seus milionários museus, capazes de comprar qualquer vento rotulado de invenção. Eles são os alvos maiores da imensa gozação.

O que afinal está acontecendo?

Somente a mentira do teatro para nos escancarar a verdade.

A arte nos salvará?


Até breve.

PS: Este post foi escrito apoiado em algumas críticas da peça, mas no fundo, ele é de minha autoria. Ou não?

Nenhum comentário:

Postar um comentário