quarta-feira, 24 de agosto de 2011

ESTAMPA

Lá fora o pau comia solto. Eram os tempos da redentora, da revolução, do governo militar. Dentro de casa, por outras razões, o chicote zunia. E a censura era principalmente paterna. Uma família de dez filhos, um nascido após o outro, penúria financeira e cultural, sobravam razões para rigidez.
Palavrão dentro de casa, sem chance. Quando um de nós queria escorraçar um irmão, mandava-lhe peidar n’água ou, no máximo, à merda. Vários assuntos eram sumariamente proibidos. Um seguramente: o tema da homossexualidade. Era também a época dos festivais da canção popular onde foi lançado parte do que de melhor se produziu da música brasileira.
Entre os artistas, Caetano Veloso. Para meu pai um homossexual com todas as plumas e paetês. Ele não dizia o que pensava de Caetano, apenas mandava desligar a televisão quando o baiano aparecia ou o rádio quando Caetano surgia cantando Alegria, Alegria.
Um dia, estávamos todos juntos almoçando e o rádio estava ligado. De repente deram a notícia da extradição de Caetano e Gil do país. Houve um silêncio geral e meu pai limitou-se a dizer: além de... é comunista!   Ele não conseguia dizer: homossexual.
Os anos se passaram. Foi-se a ditadura, eu me casei, tive meus filhos, passei uns tempos fora de BH, voltei, comprei o terreno em Santa Luzia, fiz minha parada. Um belo dia estava em nossa edícula e meu pai foi nos visitar. Sempre gostei de boa música e Caetano, apesar das restrições impostas, era e é, para mim, um dos compositores prediletos.
Havia comprado o CD Fina Estampa, gravado em 1994, em que Caetano interpreta todas as músicas em castelhano: Rumba Azul, Contigo em La distância. Recuerdos de Ipacarai  e outras, boa parte delas que meu pai, argentino, cantarolava enquanto trabalhava na oficina mecânica no galpão em frente de nossa casa onde passei toda a minha infância e juventude.
Coloquei o CD no aparelho. Fui ao encontro de meu pai. De repente ele disse: que bonito! Aumenta... Levantei-me para ir aumentar o som e me lembrei que meu pai abominara Caetano. Aumentei o volume do aparelho. Meu pai foi para próximo à caixa de som e começou a cantar junto com Caetano. Vi meu pai enxugar com as mãos as lágrimas que corriam de seus olhos quando cantarolou em dueto Recuerdos de Ipacarai. Ele então me perguntou: quem é esse cara? Como canta,esse sujeito!  Eu pensei: isso não vai acabar bem.
Peguei a caixa do disco e esperei meu pai concluir junto com Caetano uma das músicas e temendo a reação dele, passei-lhe a caixa do CD. Meu pai olhou, olhou de novo, distanciou quanto pode a caixa do CD esticando os braços para frente e disse estarrecido: mas esse viado?!!!
Pois é.

Até breve.

Um comentário:

  1. Estou aqui imaginando a cara de espanto do vovô! Muito bom o texto!!

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